(acabei de ler “A Casa dos Espíritos”,
de Isabel Allende, e por conta dos capítulos finais, lembrei-me deste conto)
O perfume
do jardim vagou pelos tempos, até a década cujo céu cinzento do Brasil mais
parecia o inverno polonês, cavalos às ruas, rumores do fim do mundo, corações
pensantes, vigilantes, cabeças decepadas, rostos todos iguais.
Você fugira
pra França, ser artista, pintava flores exóticas nada européias. Sozinha, com
raiva e medo do mundo, esquecera-se de mim e da luta contra a direita.
Esquecera-se
da cama no verão, e como fazíamos amor no inverno, tão quente quanto qualquer
estação – que, no Brasil àquela época, era uma questão e um cansaço estampados
nos rostos iguais, nos rostos do Brasil.
Eu ficara
na guerra desumana, você na humana, bem distante.
Um dia eu
tinha de fugir também pros teus braços, até a França. Passagem já tinha no
bolso, mais um ramalhete de flores do Brasil, pra você pintar o antigamente, o
nosso antigamente.
Só que no
aeroporto, um tiro da direita acertou à esquerda meu peito: a guerra desumana
não havia me esquecido, como você me esquecera. “Talvez, tenha sido melhor
assim...”, a frase de um general, a última que ouvi, e consenti.
Você não
saberia, nem ia saber, não fosse o perfume do jardim que vagou no tempo,
atravessou o oceano, derrubou da tua aquarela tinta vermelha, e você borrou a
nova pintura com uma lágrima de saudade, a obra-prima do desencontro: o mar
borrado separando o guerreiro cansado de guerra, e a artista cansada de arte
abstrata.
Eu fiquei
famoso, estampado num jornal da esquerda.
Você ficou
famosa, estampada num jornal da Europa – artista de vanguarda que borrava telas
como ninguém, rica, brasileira, com saudades dos nossos verões.
CRiga.
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