quinta-feira, 3 de março de 2016

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(acabei de ler “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, e por conta dos capítulos finais, lembrei-me deste conto)

O perfume do jardim vagou pelos tempos, até a década cujo céu cinzento do Brasil mais parecia o inverno polonês, cavalos às ruas, rumores do fim do mundo, corações pensantes, vigilantes, cabeças decepadas, rostos todos iguais.

Você fugira pra França, ser artista, pintava flores exóticas nada européias. Sozinha, com raiva e medo do mundo, esquecera-se de mim e da luta contra a direita.

Esquecera-se da cama no verão, e como fazíamos amor no inverno, tão quente quanto qualquer estação – que, no Brasil àquela época, era uma questão e um cansaço estampados nos rostos iguais, nos rostos do Brasil.

Eu ficara na guerra desumana, você na humana, bem distante.

Um dia eu tinha de fugir também pros teus braços, até a França. Passagem já tinha no bolso, mais um ramalhete de flores do Brasil, pra você pintar o antigamente, o nosso antigamente.

Só que no aeroporto, um tiro da direita acertou à esquerda meu peito: a guerra desumana não havia me esquecido, como você me esquecera. “Talvez, tenha sido melhor assim...”, a frase de um general, a última que ouvi, e consenti.

Você não saberia, nem ia saber, não fosse o perfume do jardim que vagou no tempo, atravessou o oceano, derrubou da tua aquarela tinta vermelha, e você borrou a nova pintura com uma lágrima de saudade, a obra-prima do desencontro: o mar borrado separando o guerreiro cansado de guerra, e a artista cansada de arte abstrata.

Eu fiquei famoso, estampado num jornal da esquerda.

Você ficou famosa, estampada num jornal da Europa – artista de vanguarda que borrava telas como ninguém, rica, brasileira, com saudades dos nossos verões.

CRiga.
 
 

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