quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Noêmia, a boêmia do Bom Retiro


Descobriram tarde:
Noêmia
era mulher de um homem só.

Se morreu trancada, tranquila
quimicamente tranquilizada,
descobriu cedo a chance de estar ao lado
do seu grande amor novamente.

O médico sugava seu dinheiro,
e o psicólogo só queria comê-la.
Todos queriam, e ela dava,
pra ela tanto fazia
cheia ou vazia:
ninguém preenchia o seu coração.

A última pílula foi abençoada
pela garrafa de vinho tinto intacta
presente do amigo Deise
de dois anos atrás:

“como Oscar gostava de vinho...”

Bebeu a garrafa inteira.
E ela caiu. A garrafa caiu.
Os cacos cortaram seus pés
e as janelas se abriram com o vento,
tempestade no apartamento.
A chuva encharcou o velho tapete
e um raio estalou entre seus olhos.

E Noêmia 
simplesmente nada sentiu.

Nem a dor nos pés
nem o frio pelo corpo todo nu
nem medo da amiga tempestade
nem castigada pela chuva colega de esquina
nem cega, nem viva, nem torta.

Nem assim tão morta...

A porta se abriu dois dias depois,
arrombada:
foto de Oscar colada ao peito
olhos estalados e um sorriso leve.

Descobriram tarde que Noêmia
que dava pra todo mundo
e que gargalhava feito trovão nos bares
e que roubava os corações dos homens,

era mulher
de um homem só.

Noêmia,
a boêmia do Bom Retiro.

CRiga.
(Caderno Azul - 2000)

  

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