segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Seu Inocênio


Meu avô era o exemplo vivo de que não há tempo para se deixar de viver. Nunca perdia a mínima chance de sair de casa, num bom passeio. Embora diabético, suas mãos enrugadas e companheiras assaltavam a geladeira e o armário à procura de doces, durante as tardes em que ninguém o vigiava. Nem por isso era tido como alguém que cometia um crime contra a saúde – ou mesmo contra os doces nunca tão bem guardados dos netos, que sempre quando chegavam ao lugar onde guardaram os doces, perguntavam bravos: “cadê meu doce que deixei aqui????” Seu Inocêncio não respondia, e os netos olhavam bravos, mas sem ira.

Seu Inocêncio não tinha maldade. Quando fuçava nos armários e geladeiras, sabia que não havia muito para se preocupar, nem mesmo com a diabetes, que o privou de tanta coisa durante tanto tempo antes de estar ali, no vaivém na casa sobre sua cadeira de rodas. Antes de perder uma das pernas, amputada por um problema sério de saúde, quando não tinha a carona de algum filho, ia mesmo sozinho passear pelas ruas da vizinhança, com seu bom sorriso de paz. Por vezes só ficava em frente à casa, olhando a rua, sentado numa cadeira.

Morávamos eu, minha irmã mais velha, minha mãe – que era quem trabalhava em casa – e minha vó. Quando um tio nosso passava lá em casa de carro, nos tempos em que Seu Inocêncio ainda tinha suas duas pernas, era quase sempre a mesma cena cômica: ele ficava de ouvido na conversa entre minha vó e algum tio, se fazendo de distraído. Por vezes ouvia que dali esse nosso tio iria a outro lugar, na casa de alguém ou no supermercado; como quem não quisesse nada, Seu Inocêncio ia pra o quarto; ao ouvir o “tchau” do tio, ele pegava seu velho chapéu atrás da porta e ia com seu passo de velhinho atrás, alcançando o carro já saindo. “Ara, Inocêncio, larga disso!”, gritava minha vó, brava com a atitude meio de intrometimento de meu avô. Por vezes, vencia e arrancava um bom passeio; por outras, era convencido que melhor era ficar daquela vez. Nunca ouvi ninguém dizer, simplesmente, “o senhor não vai”. Sempre tinha uma explicação, do tipo “olha, hoje é melhor o senhor não ir, porque não vai ser um bom passeio, tarará, tarará...”.

Isso porque, inegavelmente, embora encostado em sua velha poltrona de couro marrom, na cadeira de rodas ou mesmo sobre sua cama no canto da sala (de onde era mais fácil sua sobrevivência depois de ter sua perna amputada), Seu Inocêncio ainda era o líder daquela família, que se reunia em quase todos os finais de semana em nossa casa. Era sempre aquele clima de família unida, feliz, primos, primas, tios e tias. Isso ficou mais que claro depois que ele morreu: foram raras as vezes que toda a família se reuniu depois de sua morte. Embora ainda com contatos entre si, e algumas reuniões e visitas, nunca mais a família foi a mesma coisa.


Em uma das casas que morávamos, ele “morava” na sala. Recém amputada sua perna, enquanto eu assistia à TV à noite, com a luz apagada para não incomodar, ele gemia de dor (“ai, ai, ai...”), e chegava até a assobiar para “disfarçar” tamanha dor. Passou a ter um balde vermelho ao seu lado, onde jogava a urina de sua comadre; tomava banho e fazia suas necessidades biológicas na sala, com auxílio de minha vó. Eram cenas que aprendemos a aceitar, e até nos acostumamos. Mas quem iria saber lá no íntimo de Seu Inocêncio, o que ele sentia... Nem mesmo em sua velhice poderia desfrutar de um pouco de privacidade e paz? E sua dignidade, onde é que ele a disfarçou? Hoje isso dói mais em mim do que naquele tempo, quando eu mal entendia essas coisas...

Tanto mal entendia que, sem maldade, enquanto ele estava deitado em sua cama, eu por vezes sentava em sua cadeira de rodas e saía pela casa, brincando de ônibus. Nunca por maldade, e sim porque eu realmente achava divertido. Meu avô e minha vó nunca me recriminaram, assim como minha mãe. Também brincava de bola de meia pela casa, à noite enquanto esperava minha mãe chegar do trabalho. E Seu Inocêncio, mesmo com algumas boladas que tomava por acidente, nunca nunca reclamou. Acho, na verdade, que ele queria mais era aquilo, pelo menos um pouco de vida moleque dentro da casa fria para que tudo aquilo não caísse no adultismo que ele mesmo deixara para trás. Ele queria menos tristeza em seu canto da sala.

Depois mudamos para uma casa maior, da minha madrinha. Nos fundos, havia um velho escritório de meu tio, onde instalamos o quarto de meu avô. Um quarto só seu, e minha vó dormia com ele somente quando ele não passava bem. Eu tinha um quarto só meu, em cima, e minha irmã outro, junto com minha mãe. Para elas descerem, precisavam passar pelo meu quarto, mas eu nunca me importei, porque eu tinha um quarto só meu.

No quarto improvisado a meu avô, ele podia fazer o que quiser. Lá, se pelo menos não tinha sua dignidade totalmente restabelecida, tinha sua privacidade. Num canto da cabeceira da cama, ele tinha uma caixa de sapatos onde guardava pequenos pertences como pente, navalhas para barbear, perfumes, presentes e pequenos papéis (pequenos segredos, talvez, para se sentir mais vivo), e outras pequenas bugigangas. Era sua caixinha de utilidades. Eu a considerava sua caixinha sagrada, tão sua como sua dignidade e privacidade. Tão necessária quanto um moleque que não mais brincava em casa.


O tempo passou e comecei a trabalhar, e por isso já não mais brincava dentro de casa, nem “brigava” por causa do doce roubado. A bem da verdade, era difícil ver meu avô durante os dias de semana, porque eu trabalhava no dia e estudava à noite. Numa sexta-feira de férias escolares, saí às seis da tarde de meu emprego, com três bombons “sonho da valsa” dados pelo meu patrão. Antes de chegar em casa, já havia comido um; dei o outro para minha vó, que assistia novela na sala; o outro, dei para meu avô, sentado em sua cadeira de rodas, tomando uma sopa, lentamente, à mesa também na sala, de costas à TV e de cabeça baixa.

Ele estava com um rosto diferente, meio entristecido. “O que foi, vô? Tá sentindo alguma coisa”, perguntei, instintivamente. “Ele não está bem hoje. Tá sentindo dores...”, minha vó respondendo. Olhei Seu Inocêncio, estendi o terceiro bombom para ele, e disse: “trouxe para o senhor, mas é melhor não comer agora então, já que não está se sentindo bem. Tome, guarde, e só coma quando estiver melhor, viu...”, recomendei, sabendo que a recomendação era uma perda de tempo, pois do jeito que meu avô gostava de doces, ia comer logo logo. Eu sabia disso...

Na verdade, eu não sabia de muitas coisas naquela minha idade... Não sabia que a morte chegava às vezes pronunciada numa noite de sexta-feira, silenciosa, de madrugada. Não sabia, não entendia o que significava minha vó chamando minha mãe lá de baixo, minha mãe descendo correndo e gritando no quarto de meu vô; depois minha irmã passou pelo meu quarto, e perguntei, com medo da resposta, o que estava acontecendo. “Acho que o vô morreu...”, respondeu.

Chamamos o vizinho, e colocamos Seu Inocêncio no banco da frente do carro, desacordado. Somente eu fui junto ao pronto-socorro, e fiquei lá esperando a resposta do médico. “Sinto muito, ele chegou aqui já morto...”. Fiz com a cabeça positivamente que entendia, sentei num banco, mas não chorava. Aquilo ainda não tinha entrado na minha cabeça direito. A morte e o seu significado ainda não fora concebida em mim.

Um tio chegou uns vinte minutos depois no pronto-socorro. Perguntou sobre meu avô (seu pai), se estava vivo ainda. Respondi novamente com a cabeça, desta vez, negativamente. Ele fez que entendeu, também com a cabeça. Era talvez uma espécie de aceitação esses movimentos de cabeça e as respostas em monossílabos. Ele não chorou também e voltamos à nossa casa.

O sábado foi inteiro na organização do enterro. Minha vó não conseguiu ir à cova destinada a Seu Inocêncio, no cemitério do Morumbi, dar o último adeus depois do velório. Um tio meu me disse para ir junto de minha mãe, dando apoio a ela – era a única filha desquitada, e eu assumira um semi-papel de companheiro, de filho homem, mas menino.


Continuei minha “missão”, sem chorar. Era estranho, porque eu não segurava as lágrimas: eu simplesmente ainda não tivera vontade de chorar. Vendo a família toda reunida pela última vez naquela tarde de sábado, com comes e bebes, e todos já bem melhores, me sentia bem também. No final da noite, todos foram embora, e dormiram seus sonos de saudade. Cada um o seu, menos eu, que dormi de cansado mesmo.

Domingo. Decidi ir arrumar as coisas de Seu Inocêncio, as suas poucas coisas sobre a cama, já que a roupa seria doada, mas alguns pequenos objetos deveriam ser guardados de recordação. Peguei sua caixinha sagrada. Fui retirando aos poucos os objetos que pretendíamos guardar. Quase tudo retirado, embaixo do seu velho lenço azul jazia aquele embrulho cor de vinho, brilhante: o sonho de valsa.

Haveria neste mundo, e depois daquela sexta-feira, ser humano que não chorasse agora? Seu Inocêncio, talvez pela primeira vez, preferiu seguir um conselho e deixar de fazer o que mais gostava: comer um doce. Me senti mal, porque havia dito para ele não comer o bombom naquela noite, pensando que ele ia comer mesmo assim. Eu não sabia de nada, e, de uma só vez, eu soube o que a morte de alguém amado significava, ali, segurando o sonho de valsa que Seu Inocêncio preferiu não comer na sexta-feira. “Por que não comeu, vô? Era melhor ter partido com o gosto doce na boca, com o último doce que poderia levar da vida.” Abri o bombom, e, aos prantos, comi como que pedindo ao meu vô, lá de cima, que sentisse o gosto que eu sentia. Que sentisse que eu também sentia saudades suas.

E talvez por me lembrar assim de meu avô, “roubando doces”, “forçando” passeios, é que sempre quando sonho com ele, Seu Inocêncio está de pé, grandão, bonito, com suas duas pernas fortes, e aquele velho e bom sorriso de vô. O gosto daquele sonho de valsa ainda permanece em minha boca, assim como as boas lembranças que tenho dele. Por isso, na vida vale a gente ser moleque um pouco, jogar bola com o filho, comer muito doce com ele, sorrir sempre e chorar quando for preciso. E nunca, nunca, desperdiçar a chance de um bom passeio, ou comer um bombom.

Agora eu sabia, não tudo, mas o suficiente para um dia partir ou ver partir, sem precisar dizer “não coma o doce, não vá passear”. Agora eu sabia, mais do que nunca, que não há tempo para se deixar de viver. E foi Seu Inocêncio que me fizera entender.

CRiga.



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