quarta-feira, 27 de julho de 2016

Fui te buscar num velho quarto de solteiro


Nada que eu fale agora vai mudar: esta porta entreaberta e você juntando da gaveta os últimos pertences, tolos pertences, só pra colocar mais drama nestes olhos que feito barragem seguram lágrimas selvagens.  Óculos quebrados, uma caneta tinteiro velha, um CD do Chico Buarque – “pode deixar esta aí, porque fui eu que comprei no sebo” – digo, ostensiva, meu jeito de ser. “Tem ‘tatuagem’, a que eu mais gosto...” – repito, como sempre, pois sei que você não gosta dessa do Chico.

Você não diz nada, larga o CD e fecha a gaveta com calma. Que raiva a minha! Nada te abala, só eu me descontrolo. Fico aqui na sua poltrona preferida, pernas recolhidas, de camisola, perdi o sono nesta madrugada quente. De uma cama quente, a madrugada quase 28 graus, uma briga muito quente, não era assim que a gente sempre gostou? Só que nunca você fez as malas e me deixou pra trás, sozinha deitada, esperando você voltar. No máximo, apenas dormia de cú virado pra mim.  Esperei, e até sorri quando vi você, malas às mãos, enfiar e amarrotar as camisas todas espremidas lá dentro. Daí você foi pra sala, tinha certeza que voltaria, deu meia hora e estou aqui, parada na poltrona, não acreditando que de fato era o fim!...

Você nem liga, não entendo, não sei o que se passa, parece sério mesmo... Você nem me olha talvez com medo de se deixar seduzir, e eu deixo cair a primeira lágrima selvagem. ‘Quero ficar no teu corpo feito tatuagem’, eu canto, silenciosa pra mim, te amaldiçoando. “Não adianta ir, você não vai nunca me esquecer, você vai voltar...”, eu digo, baixinho, mas ostensiva, e você ouve, simplesmente não responde.

Para agora no corredor vendo o quartinho de bagunças, pensando, talvez, como e quando levar seus discos de vinil que você nunca deixou eu jogar fora. Uma bagunça de vinil empoeirada que não servia pra nada nada, já que nem toca-discos tínhamos mais. Ainda bem, coisa mais antiga essa.

Vários discos de vinil... tem um do Pink Floyd que você amava, vivia remexendo desejando ouvir novamente – o engraçado é que nem assim você comprava CDs deles. Este disco era aquele de capa preta, com uma piramedezinha saindo um arco-íris de dentro – você ficava louco quando eu me referia assim, ‘é caleidoscópio, caleidoscópio!’. Daqueles tempos que a gente se juntava no seu antigo quarto de solteiro para ouvir, eu gostava mais daquela música instrumental, só com os gritos lindos loucos de uma garota no final do lado A. E você sempre me repetia que a música era conhecida como ‘the religion song’ quando os caras estavam gravando, e que colocaram depois aquele nomezão que não sei. O que sei é que a gente sempre acabava pecando justamente naquela música, sua mãe não podia ouvir meus gritos que queriam acompanhar a moça da canção, e você abafava minha voz. Tua mãe até que gostava de Pink Floyd, mas detestava sentir o cheiro de baseado do teu quarto, nossa perdição, e foi veemente: ‘não quero mais essa porra em casa!’ – ainda bem que não encanou com as transas. Do disco do Floyd, o lado A sempre acabava, e só depois do gozo você virava – a primeira do B eu me lembro, chama ‘Money’!

Tinha também um do Led Zeppelin cuja capa parecia com um presépio, a capa toda furadinha em forma de janelinhas - você também odiava quando eu me referia como ‘presépio’, ‘coisa mais sem noção e sem respeito’, você dizia. Você ouvia esse direto e reto, tinha uma música que você dizia ser a maior do Led Zeppelin gravada em estúdio, uma com guitarras em vai-vém e uma bateria de quebrar, e você ficava imitando um baterista louco, eu sorria, gostava de ver. Foi assim que eu aprendi a amar você.

Tinha também vários do Chico, aquele do Caetano que você diz ser uma gravação homossexual, ele e aquele cabelão de hippie. Aquele lindo do Clube da Esquina, com uma música que falava dos ratos na esquina, e outra do girassol da cor de cabelo – eu ficava puta, porque você cantava com gosto e eu sempre fui morena, caralho, ciúme besta!... Tinha também aquele do Zé Ramalho que ele aparece na capa com o Zé do Caixão, e eu vivia pedindo pra você jogar fora e você me respondia cantando imitando o vozeirão dele numa daquelas músicas que fala de mar, cheia de rimas... sei lá... O meu defeito é esse: não sei nomes de discos nem me lembro dos nomes das canções - só ‘tatuagem’ do Chico, que eu comprei o CD que você se negava ouvir porque não gostava da música.

Depois do flash, outra lágrima selvagem corre, dando passagem à cavalaria louca salgada sobre meus lábios suplicando um beijo teu. Você não diz nada, me afasta com calma, abre a porta e vai definitivamente embora. Era sua hora de recuperar algo que nem mesmo você sabia o que era, lá fora, talvez naquele quarto de solteiro que você disse ter vivido mais feliz. E disse, com todas as letras quando a gente brigava: ‘me falta alguma coisa de antigamente nessa vida de hojemente’, poeta inventor de palavras e crises. Foda-se, então, vai com deus e o diabo.

Imediatamente busco na gaveta toda revirada o CD do Chico, rolo ‘tatuagem’ e rolo no tapete de tanta dor. Durmo soluçando de cansaço depois de até o repeat do CD player cansar. Naquela noite choveu muito, uma chuva de verão e de amores dissonantes - cada granizo na janela um tiro certeiro, e eu não era mais tua. Dia seguinte joguei o CD fora, Chico Buarque nunca mais.

Passaram dias e dias e você não voltava, nem pra buscar os discos de vinil que você tanto amava e não deixava eu jogar fora. Resolvi fazer uma faxina, limpei um por um, fiquei numa renite desgraçada. E chorava de vez em quando saudades tuas em cada capa de disco, cada historinha besta de música que você sabia de cor e fazia questão de me contar. Eu mal ouvia, bastava apenas prestar um pouquinho de atenção e me apaixonar cada vez mais.

Mas ainda sentia muito a tua falta, principalmente na hora de deitar sozinha naquelas noites tão quentes. Era quando meus dedos então passeavam por mim mesma te procurando, você não estava, eu me entrava com tudo unhas grandes gemendo tentando te chamar, você não vinha, eu te procurava nos bicos dos meus seios aquela língua quente sibilando indecências, e eu morria lembrando o quanto morri e renasci nos teus braços, meu corpo sua sempre morada quente... Cheguei a sangrar, manchar a cama, eu queria a hemorragia.

Em mais uma noite quente daquele verão confuso, me preparava pra dormir, certa da chuva a castigar mais uma vez minha janela – quando, cabeça baixa, você atravessou a sala carregando uma caixa. Eu não acreditei, você voltava, mas para recolher o resto de ti que ficou aqui. Foi até nosso quarto de bagunças, fiquei estatelada na sala por alguns minutos, não suportaria ver você encaixotando os restos de nós.

Daí ouvi um som - ‘quero ficar no teu corpo/feito tatuagem...’. O que era aquilo, tortura, não podia ser... Na bagunça daquele quarto agora arrumadinho, você encontrou um canto para instalar o toca-discos do quarto de solteiro da casa da tua mãe. E a primeira música que escolheu foi a do Chico, que você odiava, mas que achara num sebo qualquer do centro da cidade.

Da porta eu vi você: numa mão, a capa do disco molhada de lágrimas selvagens. No braço, meu nome tatuado numa rosa vermelha tribal, e você cantando junto aquela canção do Chico que você decorou. No rosto, a cara de menino me pedindo, e eu nem deixei pedir: cai de boca na tua boca pra eu me devolver a ti.

O resto da noite deveria ser de chuva forte, e de ouvir velhos discos da juventude. E choveu mesmo, como todo dia chovia naquele janeiro insano. No quarto das bagunças de antigamente, só de vez em quando sobrava uma brecha pra trocar um disco, porque o que ouvíamos de fato era o som das nossas vozes num coro ofegante, a noite inteira, gritos roucos parecendo acompanhar aquela ‘canção da religião’ instrumental do Pink Floyd.

Aliás, dos discos não ouvimos quase nenhum lado B – naquela madrugada apenas ‘Money’. Naquela madrugada, apenas você e eu, dois copos da cerveja gelada de sempre e o fumo enrolado de antigamente, aquele proibido por tua mãe, lá daquele quarto de solteiro.

E, é claro: o som do vinil fritando ovo, no velho toca-discos de salvar a pátria!

CRiga. 


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