Nada que eu fale
agora vai mudar: esta porta entreaberta e você juntando da gaveta os últimos
pertences, tolos pertences, só pra colocar mais drama nestes olhos que feito
barragem seguram lágrimas selvagens. Óculos
quebrados, uma caneta tinteiro velha, um CD do Chico Buarque – “pode deixar
esta aí, porque fui eu que comprei no sebo” – digo, ostensiva, meu jeito de
ser. “Tem ‘tatuagem’, a que eu mais gosto...” – repito, como sempre, pois sei
que você não gosta dessa do Chico.
Você não diz
nada, larga o CD e fecha a gaveta com calma. Que raiva a minha! Nada te abala,
só eu me descontrolo. Fico aqui na sua poltrona preferida, pernas recolhidas,
de camisola, perdi o sono nesta madrugada quente. De uma cama quente, a madrugada
quase 28 graus, uma briga muito quente, não era assim que a gente sempre
gostou? Só que nunca você fez as malas e me deixou pra trás, sozinha deitada,
esperando você voltar. No máximo, apenas dormia de cú virado pra mim. Esperei, e até sorri quando vi você, malas às
mãos, enfiar e amarrotar as camisas todas espremidas lá dentro. Daí você foi
pra sala, tinha certeza que voltaria, deu meia hora e estou aqui, parada na
poltrona, não acreditando que de fato era o fim!...
Você nem liga, não
entendo, não sei o que se passa, parece sério mesmo... Você nem me olha talvez
com medo de se deixar seduzir, e eu deixo cair a primeira lágrima selvagem. ‘Quero
ficar no teu corpo feito tatuagem’, eu canto, silenciosa pra mim, te
amaldiçoando. “Não adianta ir, você não vai nunca me esquecer, você vai voltar...”,
eu digo, baixinho, mas ostensiva, e você ouve, simplesmente não responde.
Para agora no
corredor vendo o quartinho de bagunças, pensando, talvez, como e quando levar
seus discos de vinil que você nunca deixou eu jogar fora. Uma bagunça de vinil
empoeirada que não servia pra nada nada, já que nem toca-discos tínhamos mais.
Ainda bem, coisa mais antiga essa.
Vários discos de
vinil... tem um do Pink Floyd que você amava, vivia remexendo desejando ouvir
novamente – o engraçado é que nem assim você comprava CDs deles. Este disco era
aquele de capa preta, com uma piramedezinha saindo um arco-íris de dentro –
você ficava louco quando eu me referia assim, ‘é caleidoscópio, caleidoscópio!’.
Daqueles tempos que a gente se juntava no seu antigo quarto de solteiro para
ouvir, eu gostava mais daquela música instrumental, só com os gritos lindos
loucos de uma garota no final do lado A. E você sempre me repetia que a música era
conhecida como ‘the religion song’ quando os caras estavam gravando, e
que colocaram depois aquele nomezão que não sei. O que sei é que a gente sempre
acabava pecando justamente naquela música, sua mãe não podia ouvir meus gritos
que queriam acompanhar a moça da canção, e você abafava minha voz. Tua mãe até
que gostava de Pink Floyd, mas detestava sentir o cheiro de baseado do teu
quarto, nossa perdição, e foi veemente: ‘não quero mais essa porra em casa!’ –
ainda bem que não encanou com as transas. Do disco do Floyd, o lado A sempre acabava,
e só depois do gozo você virava – a primeira do B eu me lembro, chama ‘Money’!
Tinha também um
do Led Zeppelin cuja capa parecia com um presépio, a capa toda furadinha em
forma de janelinhas - você também odiava quando eu me referia como ‘presépio’, ‘coisa
mais sem noção e sem respeito’, você dizia. Você ouvia esse direto e reto,
tinha uma música que você dizia ser a maior do Led Zeppelin gravada em estúdio,
uma com guitarras em vai-vém e uma bateria de quebrar, e você ficava imitando
um baterista louco, eu sorria, gostava de ver. Foi assim que eu aprendi a amar você.
Tinha também
vários do Chico, aquele do Caetano que você diz ser uma gravação homossexual, ele
e aquele cabelão de hippie. Aquele lindo do Clube da Esquina, com uma música
que falava dos ratos na esquina, e outra do girassol da cor de cabelo – eu
ficava puta, porque você cantava com gosto e eu sempre fui morena, caralho,
ciúme besta!... Tinha também aquele do Zé Ramalho que ele aparece na capa com o
Zé do Caixão, e eu vivia pedindo pra você jogar fora e você me respondia
cantando imitando o vozeirão dele numa daquelas músicas que fala de mar, cheia
de rimas... sei lá... O meu defeito é esse: não sei nomes de discos nem me
lembro dos nomes das canções - só ‘tatuagem’ do Chico, que eu comprei o CD que
você se negava ouvir porque não gostava da música.
Depois do flash,
outra lágrima selvagem corre, dando passagem à cavalaria louca salgada sobre
meus lábios suplicando um beijo teu. Você não diz nada, me afasta com calma,
abre a porta e vai definitivamente embora. Era sua hora de recuperar algo que
nem mesmo você sabia o que era, lá fora, talvez naquele quarto de solteiro que
você disse ter vivido mais feliz. E disse, com todas as letras quando a gente
brigava: ‘me falta alguma coisa de antigamente nessa vida de hojemente’, poeta
inventor de palavras e crises. Foda-se, então, vai com deus e o diabo.
Imediatamente
busco na gaveta toda revirada o CD do Chico, rolo ‘tatuagem’ e rolo no tapete
de tanta dor. Durmo soluçando de cansaço depois de até o repeat do CD
player cansar. Naquela noite choveu muito, uma chuva de verão e de amores
dissonantes - cada granizo na janela um tiro certeiro, e eu não era mais tua.
Dia seguinte joguei o CD fora, Chico Buarque nunca mais.
Passaram dias e
dias e você não voltava, nem pra buscar os discos de vinil que você tanto amava
e não deixava eu jogar fora. Resolvi fazer uma faxina, limpei um por um, fiquei
numa renite desgraçada. E chorava de vez em quando saudades tuas em cada capa
de disco, cada historinha besta de música que você sabia de cor e fazia questão
de me contar. Eu mal ouvia, bastava apenas prestar um pouquinho de atenção e me
apaixonar cada vez mais.
Mas ainda sentia
muito a tua falta, principalmente na hora de deitar sozinha naquelas noites tão
quentes. Era quando meus dedos então passeavam por mim mesma te procurando,
você não estava, eu me entrava com tudo unhas grandes gemendo tentando te
chamar, você não vinha, eu te procurava nos bicos dos meus seios aquela língua
quente sibilando indecências, e eu morria lembrando o quanto morri e renasci
nos teus braços, meu corpo sua sempre morada quente... Cheguei a sangrar,
manchar a cama, eu queria a hemorragia.
Em mais uma noite
quente daquele verão confuso, me preparava pra dormir, certa da chuva a
castigar mais uma vez minha janela – quando, cabeça baixa, você atravessou a
sala carregando uma caixa. Eu não acreditei, você voltava, mas para recolher o
resto de ti que ficou aqui. Foi até nosso quarto de bagunças, fiquei estatelada
na sala por alguns minutos, não suportaria ver você encaixotando os restos de
nós.
Daí ouvi um som
- ‘quero ficar no teu corpo/feito tatuagem...’. O que era aquilo, tortura, não
podia ser... Na bagunça daquele quarto agora arrumadinho, você encontrou um
canto para instalar o toca-discos do quarto de solteiro da casa da tua mãe. E a
primeira música que escolheu foi a do Chico, que você odiava, mas que achara
num sebo qualquer do centro da cidade.
Da porta eu vi
você: numa mão, a capa do disco molhada de lágrimas selvagens. No braço, meu
nome tatuado numa rosa vermelha tribal, e você cantando junto aquela canção do
Chico que você decorou. No rosto, a cara de menino me pedindo, e eu nem deixei
pedir: cai de boca na tua boca pra eu me devolver a ti.
O resto da noite
deveria ser de chuva forte, e de ouvir velhos discos da juventude. E choveu
mesmo, como todo dia chovia naquele janeiro insano. No quarto das bagunças de
antigamente, só de vez em quando sobrava uma brecha pra trocar um disco, porque
o que ouvíamos de fato era o som das nossas vozes num coro ofegante, a noite
inteira, gritos roucos parecendo acompanhar aquela ‘canção da religião’
instrumental do Pink Floyd.
Aliás, dos
discos não ouvimos quase nenhum lado B – naquela madrugada apenas ‘Money’.
Naquela madrugada, apenas você e eu, dois copos da cerveja gelada de sempre e o
fumo enrolado de antigamente, aquele proibido por tua mãe, lá daquele quarto de
solteiro.
E, é claro: o som
do vinil fritando ovo, no velho toca-discos de salvar a pátria!
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