quinta-feira, 7 de julho de 2016

Intenções de papelaria


Nem o anel prateado no dedo anular direito dela conseguia tirar aqueles olhos azuis de sua cabeça. E apesar de não ser como as carolas de sua igreja, ela era sim a ‘devotadinha jovem demais para apenas sobreviver’ – foi o que ele disse do outro lado do balcão da papelaria onde ela trabalhava, e ela já até aceitando o jeito ostensivo, porém sedutor, daquele que a tirara de sua paz aparente de cabelos compridos presos no trabalho, saia até os joelhos e reuniões na igreja do bairro.

Ele não tinha cara nem jeito desses canalhas. As conversas puxadas, tranquilas, gostosas e depois tão profundas nos seus olhos, passaram de absurdas a docemente envolventes. Conversa tão sedutora que o absurdo tornava-se irresistível, mas ela não podia, nunca, não namorando aquele irmãozinho tão bonzinho da igreja. E via tantas irmãs bem casadas, aquela rotina tão controlada e suave de cultos e cultos na igreja, casais bem vestidos indo embora pra casa, casamentinhos engomados e apertados nas casinhas cheirando a mofo, o namorado-irmãozinho dez anos mais velho acompanhando até o portão e às vezes entrando apenas a convite do pai.

Ainda mais aquele irmãozinho... o pai dele também é irmão na igreja, grandão, reza com voz forte. O defeito é que ele ainda não foi libertado da violência que comete contra a mulher em casa. Bateu muito no filho também, o namorado dela, e continua a bater nos mais novos. Acaricia de forma diferente a filha mais nova. Mas vai à igreja todos os dias, prega o dia todo, a vida dele é falar da igreja, é de comover. Mas ainda bate na mulher. E bebe pouco além da conta de vez em quando também.

Tem casos assim na igreja, gente que casa e se desvirtua com deslizes. Gente que bebe muito, que bate, que alicia, que acaricia, que rouba, que maldiz, que é invejosa, que está “carregada’. Mas a igreja perdoa, todos sabem, basta devotar-se com fé, ir todos os dias, ajudar nos dízimos. Outros pecados podem até acontecer, mas a igreja sempre apaga.

“Quem sabe agarrar-me a Deus seja a solução dos meus problemas, mas quem sabe agarrar-me a meus problemas seja a solução de Deus”, ela ouvira certa vez, sem dar muita atenção. Mas agora, depois de tanto tempo de igreja e valas comuns, começava a entender – ela não queria cair na tal da vala comum. Mas também sentia que muitos irmãos eram comuns, e buscavam na igreja apenas uma desculpa para seus pecados – ou continuar pecando com permissão. Ela não era assim.

Ele ali na loja, na sua frente, olhos azuis pedindo mais que a boca pedia com palavras sutis. Com sorrisos sutis. Sim, ele tinha segundas intenções. ‘E daí? Prefiro o fogo a um olho roxo de vigília, a uma vida inteira de rotina cinza’, ele disse, brincando com as palavras. ‘Acho que o certo é mesmo as segundas intenções virem antes das primeiras... assim a gente pode até errar, mas não por excesso de cuidado, talvez sim pela chance de sentir alguma coisa diferente, o que um dia pode fazer a diferença.’

E ela pensou muito depois daquilo, depois que ele foi embora. Ele saiu com suas compras de papelaria, inabalável. Era maduro, muito seguro do que queria.

Um dia depois, ele voltou à loja. Sorriu de novo, puxou papo de novo. Ela saiu mais cedo. Tomaram um café. Ela sentiu uma coisa que nunca havia sentido. E resolveu se respeitar. Se encontrar.

Foram três meses de ‘caso’, como se dizia. Encontros que passaram a ser mais intensos, às vezes num motel ou outro, onde perdera com ele sua virgindade antes tão orgulhosamente ostentada entre amigas carolas. Jovenzinha, mas agora tão segura de si, sabia até onde podia ir, sabia que não podia se encantar e que vida era assim mesmo. Respeitar-se.

Aquele irmãozinho da igreja é que ficou muito puto com o fim do namoro. Viu naufragar o possível casamentinho engomado, a noite que finalmente tiraria a virgindade de uma esposa, não de uma das suas anônimas namoradas. Depois do casamento, talvez até pararia de traí-la com as outras irmãzinhas da igreja.

Mas quem piorou mesmo foi o pai dele. Depois de beber umas a mais, matou a esposa e depois até virou pastor de sua própria igreja. E perdoava as irmãs e irmãos adúlteros, os jovens drogados e marginais, a vizinha que maldizia... Desde que orassem forte e contribuíssem no dízimo. A perfeita roda dos infortúnios.

Depois dos três meses, o ‘caso’ acabou naturalmente, sorrisos, últimos beijos, nunca mais compras na mesma papelaria, tudo bem, a vida continua. Seus pais entenderam a mudança de comportamento quando ela não queria mais ir à igreja – nem por isso ela estava prestes a roubar ou matar alguém. Seus pais eram diferentes dos irmãos da igreja, não impunham nada nem à própria filha, e isso ela entendia como respeito e educação, tudo o que ela com certeza seguiria pelo resto de sua vida.

E ela continuou, inabalável. Cortou um pouco os cabelos castanhos, agora mais claros, e não mais os mantinha presos. As saias no joelho foram trocadas por vestidos coloridos, jeans e blusinhas apertadinhos, que davam a forma da menina linda que ela era.

Havia agora sempre um sorriso mais natural. Arrumou um namorado muito gente boa, quase da mesma idade, que gostava de rock e MPB. Entrou na faculdade, conseguiu melhor emprego.  

Agora sim, alguém era de fato senhor do seu destino. Ou melhor, senhorita.

Ou ainda melhor: mulher.

CRiga.


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