Nem o anel prateado
no dedo anular direito dela conseguia tirar aqueles olhos azuis de sua cabeça.
E apesar de não ser como as carolas de sua igreja, ela era sim a ‘devotadinha
jovem demais para apenas sobreviver’ – foi o que ele disse do outro lado do
balcão da papelaria onde ela trabalhava, e ela já até aceitando o jeito
ostensivo, porém sedutor, daquele que a tirara de sua paz aparente de cabelos
compridos presos no trabalho, saia até os joelhos e reuniões na igreja do
bairro.
Ele não
tinha cara nem jeito desses canalhas. As conversas puxadas, tranquilas,
gostosas e depois tão profundas nos seus olhos, passaram de absurdas a
docemente envolventes. Conversa tão sedutora que o absurdo tornava-se
irresistível, mas ela não podia, nunca, não namorando aquele irmãozinho tão
bonzinho da igreja. E via tantas irmãs bem casadas, aquela rotina tão
controlada e suave de cultos e cultos na igreja, casais bem vestidos indo
embora pra casa, casamentinhos engomados e apertados nas casinhas cheirando a
mofo, o namorado-irmãozinho dez anos mais velho acompanhando até o portão e às
vezes entrando apenas a convite do pai.
Ainda mais
aquele irmãozinho... o pai dele também é irmão na igreja, grandão, reza com voz
forte. O defeito é que ele ainda não foi libertado da violência que comete
contra a mulher em casa. Bateu muito no filho também, o namorado dela, e
continua a bater nos mais novos. Acaricia de forma diferente a filha mais nova.
Mas vai à igreja todos os dias, prega o dia todo, a vida dele é falar da
igreja, é de comover. Mas ainda bate na mulher. E bebe pouco além da conta de
vez em quando também.
Tem casos
assim na igreja, gente que casa e se desvirtua com deslizes. Gente que bebe
muito, que bate, que alicia, que acaricia, que rouba, que maldiz, que é
invejosa, que está “carregada’. Mas a igreja perdoa, todos sabem, basta
devotar-se com fé, ir todos os dias, ajudar nos dízimos. Outros pecados podem
até acontecer, mas a igreja sempre apaga.
“Quem sabe
agarrar-me a Deus seja a solução dos meus problemas, mas quem sabe agarrar-me a
meus problemas seja a solução de Deus”, ela ouvira certa vez, sem dar muita
atenção. Mas agora, depois de tanto tempo de igreja e valas comuns, começava a
entender – ela não queria cair na tal da vala comum. Mas também sentia que
muitos irmãos eram comuns, e buscavam na igreja apenas uma desculpa para seus
pecados – ou continuar pecando com permissão. Ela não era assim.
Ele ali na
loja, na sua frente, olhos azuis pedindo mais que a boca pedia com palavras
sutis. Com sorrisos sutis. Sim, ele tinha segundas intenções. ‘E daí? Prefiro o
fogo a um olho roxo de vigília, a uma vida inteira de rotina cinza’, ele disse,
brincando com as palavras. ‘Acho que o certo é mesmo as segundas intenções virem
antes das primeiras... assim a gente pode até errar, mas não por excesso de
cuidado, talvez sim pela chance de sentir alguma coisa diferente, o que um dia
pode fazer a diferença.’
E ela pensou
muito depois daquilo, depois que ele foi embora. Ele saiu com suas compras de
papelaria, inabalável. Era maduro, muito seguro do que queria.
Um dia
depois, ele voltou à loja. Sorriu de novo, puxou papo de novo. Ela saiu mais
cedo. Tomaram um café. Ela sentiu uma coisa que nunca havia sentido. E resolveu
se respeitar. Se encontrar.
Foram três
meses de ‘caso’, como se dizia. Encontros que passaram a ser mais intensos, às
vezes num motel ou outro, onde perdera com ele sua virgindade antes tão
orgulhosamente ostentada entre amigas carolas. Jovenzinha, mas agora tão segura
de si, sabia até onde podia ir, sabia que não podia se encantar e que vida era
assim mesmo. Respeitar-se.
Aquele
irmãozinho da igreja é que ficou muito puto com o fim do namoro. Viu naufragar o
possível casamentinho engomado, a noite que finalmente tiraria a virgindade de
uma esposa, não de uma das suas anônimas namoradas. Depois do casamento, talvez
até pararia de traí-la com as outras irmãzinhas da igreja.
Mas quem
piorou mesmo foi o pai dele. Depois de beber umas a mais, matou a esposa e
depois até virou pastor de sua própria igreja. E perdoava as irmãs e irmãos
adúlteros, os jovens drogados e marginais, a vizinha que maldizia... Desde que
orassem forte e contribuíssem no dízimo. A perfeita roda dos infortúnios.
Depois dos
três meses, o ‘caso’ acabou naturalmente, sorrisos, últimos beijos, nunca mais
compras na mesma papelaria, tudo bem, a vida continua. Seus pais entenderam a
mudança de comportamento quando ela não queria mais ir à igreja – nem por isso
ela estava prestes a roubar ou matar alguém. Seus pais eram diferentes dos
irmãos da igreja, não impunham nada nem à própria filha, e isso ela entendia
como respeito e educação, tudo o que ela com certeza seguiria pelo resto de sua
vida.
E ela
continuou, inabalável. Cortou um pouco os cabelos castanhos, agora mais claros,
e não mais os mantinha presos. As saias no joelho foram trocadas por vestidos
coloridos, jeans e blusinhas apertadinhos, que davam a forma da menina linda
que ela era.
Havia agora
sempre um sorriso mais natural. Arrumou um namorado muito gente boa, quase da mesma
idade, que gostava de rock e MPB. Entrou na faculdade, conseguiu melhor
emprego.
Agora sim,
alguém era de fato senhor do seu destino. Ou melhor, senhorita.
Ou ainda
melhor: mulher.
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