sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Espreita


Antes de entramos naquela porta sem volta, sem velhos anjos juvenis a acobertarem nossos pecados antes liberados, deixe-me dizer das trapaças da vida e das esquinas, das ruas se essas ruas fossem minhas.

Eu te esperei sem tempo de olhar por mim – flores às mãos e um poema de Drummond. Hoje e há muito sou mais um conto de Caio Fernando, talvez tristezas novas, talvez ternuras velhas, mas no sangue corre aquela impressão de década de 80 empoeirando ideais dos 70.

A questão é: poderemos ser jovens novamente? Não, nunca poderemos! Conservar o espírito é obrigação do ser humano, mas não dá para escondê-lo daquele ácido cotidiano, cada gota a cada dia, depois de anos corroeu-se boa parte do brilho antes reservado a um amor juvenil.

Melhor então concentrar-me em consertar as esquinas inteiras, não quebradas por tua simples onipresença enquanto te esperei. Melhor cuidar de ajudar homens da lei a mudar o nome daquela rua, como se aquela rua fosse minha. Deixemos aquela porta guardada feito foto desbotada no bolso roto, porque o resto são memórias que não ajudam a viver, às vezes só sobreviver. O resto do caminho pela nossa rua se fez e ainda se faz avenidas e alamedas, becos e trincheiras. Espreita.

O que há é isso mesmo: a espreita melancólica e os velhos anjos juvenis, hoje adultos que seguram nossas mãos na direção “correta”; as trapaças da vida e as ruas se essas ruas fossem minhas só pro meu amor passar – mas passar apenas feito corte e cicatriz. O sangue ainda escorre um pouco às vezes, mas vai passar, meu amor, vai passar, mantenha teu caminho, teu brilho sem ladrilho, tua porta entreaberta, porque tudo passa feito febre, tudo passa, meu amor, menos você na minha rua, tudo bem, essa rua já sou eu, esse asfalto já sou eu.

E a espreita é cega. O asfalto já trincou. A rua vai fechar. As casas vão ser abandonadas. E as portas vão ranger a dor do abandono feito aquelas ruas de faroeste ou em filmes de ficção, quando um vírus destrói a cidade.

Tudo vai ficar bem, meu amor, tudo vai ficar…


CRiga.

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