sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A pequena e o escritor


Assinava com um singelo: “com amor, de sua pequena”. Era pequena, mas tão lindinha menina de interior! Levava bolo de fubá, curau, docinho de leite e tudo de mais para agradar o “senhor escritor” – escritor de cartas, que se diga. Ele bem que quis ser escritor na sua juventude, até pequenos prêmios de literatura ganhara, mas acabou que os dias da semana corroeram seu tempo e talento. Foi parar mesmo naquela repartição de atendimento público, profissão “escritor e ledor de cartas”.

Arrumou certa paixão pelo emprego – afinal, se não tinha mais inspiração para histórias, pelo menos ficava feliz em reproduzir as que lhe ditavam. E também se sentia privilegiado por saber de tantas histórias de tantas pessoas do Brasil. Inspirações caseiras.

A cada semana, aquela mocinha da roça vinha ditar uma cartinha ao moço da fazenda que deixara em sua cidadezinha de interior, e com quem teve um romance muito rápido antes de seu pai mudar para a Capital, a trabalho em uma obra. E a cada semana que passava, o escritor/ledor esperava mais ansiosamente a pequena. Era uma paixão pura. Não era sua a pequena, mas mesmo assim nunca sobrepôs seus desejos à profissão: era fiel ao que ela queria escrever, palavras de amor, saudades, desejo... sim, ela revelava os mais escondidos desejos de reencontro, como seria, onde seria, onde queria ser tocada por ele... Cada cartinha melhor que outra, mais apaixonada, com saudades daquele certo moço.

Acontece que o moço nunca respondia. E apesar do amor do escriba frustrado, ele nunca gostou da negativa a cada pergunta dela, chegando sorridente ao guichê: “tem alguma coisa pra mim?... não?... tudo bem, eu sei que ele vai escrever. Vamos em frente, hoje a carta vai ser de amor ofendido então... pouquinho só, pra fazer drama pra ele” – ela disse um dia, sorrindo de novo. E a admiração do escriba por aquela criatura crescia cada vez mais.

Àquela altura, ele até ajudava a encontrar palavras para as cartas. Aconselhava: “não acha melhor dizer: ‘tenho a alma rota de desejo, mas feito só a metade de um lençol’, do que dizer ‘te espero ao lado de minha cama, com muita saudade do teu corpo’?”. “Não vai entender, ele é meio burro, sabe?... Mas tenta aí, vai que dá certo dessa vez”, e ela ria aquele riso de menina pura de interior.

Foram meses de cartas semanais não respondidas. Meses de exercício literário de um escriba que, finalmente, tornava-se escritor com a ajuda e o aceite da pequena. Afinal, como não aceitar sugestões tão bonitas, profundas e ao mesmo tempo tão verdadeiras. “Como consegue ser tão bom em encontrar palavras, senhor escritor?”

E ela não desistia. Era um amor incondicional, uma saudade calma, serena, tão certa da resposta. Que um dia veio.

Não acreditou na afirmativa do escriba. “Uma carta, pra mim?! Não acredito! É verdade? Vamos, por favor, leia logo pra mim senhor escritor!”. Misto de tristezinha e de alegria por ela, ele abriu a carta. “Vamos, leia!”. “É um comunicado. Ele morreu faz três meses, num rio. Seu corpo não foi encontrado. E pedem para que você esqueça a história, muito dolorosa à família”.

Silêncio. Muda, algumas lágrimas escorreram. “É só? Não tem mais nada?”. “Não, mais nada. É apenas um comunicado, curto e grosso”. Levantou-se lentamente, virou-se e caminhava passos lentos, como se não soubesse onde pisava. Virou-se ao escriba, as lágrimas estouraram numa boiada triste. “Obrigado...”, disse. Foi embora.

O escriba bem que queria abraçá-la, consolá-la. Mas não teve coragem de detê-la, afinal, como conseguir olhar pra ela e continuar escondendo que ele de fato respondera a carta, que não era aquilo que estava escrito, que ele não havia morrido – mas que devia, era melhor que fosse assim.

“Não escreva mais essas cartas pra mim. Casei com sua amiga, mais bonita e inteligente, essas suas cartinhas melosas são muito chatas, como você sempre foi. Me esquece de uma vez, sua caipira.”

Como dizer isso à pequena? Como desfazer assim tão brutamente um sonho tão bonito? E se ela não desistisse?... A vida podia ser assim, mas não precisava ser, não naquele mundo que ele ajudou a escrever. Entendeu que a deixaria menos triste se ele morresse do que revelasse a personalidade de alguém que não merecia aquele amor, aquelas belas cartas de saudades verdadeiras.

Era um final alternativo. Ele, agora escritor realizado, achava que, por amor, também tinha esse direito. Ela, nunca mais voltou. Certo ou não, pequena e escritor, duas vidas que tomaram seus rumos.

Mas as histórias continuavam, assim como a vida precisava. Preocupação com filho na cidade grande. Filha grávida avisando a novidade à mãe. Saudades do marido no garimpo. Receita de bolo pra comadre. Uma carta da fazenda, um pedido de perdão...


CRiga.

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