“São sete e meia da noite, e a
situação na loja de brinquedos no centro do Rio continua a mesma. A polícia já
cercou o local, e o único assaltante que não conseguiu fugir ainda mantém uma
moça como refém. Ele segura a moça com o braço esquerdo e a arma na mão
direita. O clima é tenso, e o comandante ainda negocia a rendição com o rapaz,
que aponta a arma na cabeça da refém. Ele parece estar bastante nervoso, e a
polícia pede calma. O rapaz aparenta não passar dos dezesseis anos de idade, e chegam
informações de que mora no Morro Querubim, na Zona Sul do Rio. Policiais de
elite estão aguardando o momento certo para disparar, caso o rapaz não se
entregue. A situação é tensa, e a qualquer momento voltamos com mais
informações.”
Naquele
momento, mesmo com todos os flashes, câmeras, policiais e multidão na sua
frente, Francisco César da Silva, 15 anos de idade, vulgo “Chiquinho Querubim”,
não estava com medo. Estava revoltado por seus companheiros tê-lo abandonado
ali, e ele ser obrigado a tomar um refém para tentar se safar daquele assalto.
Não tinha
medo de nada, a vida não deixava. Era a primeira vez que cometia um crime grave
– antes, somente pequenos furtos. Decidiu “pegar pesado” porque ninguém dava
chance a ele, a vida era uma merda no morro, estava cansado do leva e traz que
fazia para traficantes. Não que sentisse raiva, afinal descobrira, de forma
trágica, que seu pai fora um deles. Nunca sentiu raiva de seu pai, e os únicos
que apoiaram sua família de mais cinco irmãos foram os “colegas” de seu
falecido pai.
Na verdade,
tinha adoração por seu pai. Quando criança, moleque de uns seis anos, corria
descalço ao encontro do pai quando ele subia o morro com seu sorriso tranqüilo
de bom negro. Logo, voltava a correr com os pés fortes sobre o chão de terra
batida da favela, até quase o topo do morro, onde empinava suas pipas.
Chiquinho
era o melhor na pipa. O melhor de todos os garotos do morro. Fazia as mais
bonitas, era craque no cerol e cortava todos com uma habilidade só dele. De
nada mais entendia, nem de pobreza ou crime, só entendia de pipa. Inspirou-se
em seu pai, que tinha uma pipa vermelha enorme, e algumas vezes, entre aquela
coisa confusa de policiais subindo o morro, ia no topo – onde só ele podia ir –
e botava no ar aquela pipa linda, com as letras “CV” no centro. Para Chiquinho,
o pai mandava mensagens secretas sobre pipas e cerol aos morros vizinhos quando
soltava a pipa. Para ele, era uma espécie de “brincadeira secreta”: quando os
policiais subiam o morro e entravam nas casas revirando tudo, seu pai ia se
distrair “conversando com os outros morros” através daquela pipa enorme, linda
e vermelha.
Daí que
Chiquinho morria de vontade de empinar aquela pipa vermelha, enorme e linda, do
mesmo lugar no topo do morro onde seu pai empinava naqueles dias confusos. Só
que seu pai não emprestava a pipa, nem deixava o filho empinar as suas pipas
naquele local, no topo do morro.
-
Deixa
eu empinar, pai, deixa?
-
Não,
Chiquinho. Essa pipa não pode.
-
Por
que não?
-
Ela
é diferente. Não é pipa de brincar como as que você faz e empina. É uma pipa
mágica!
Chiquinho
não entendia nada da explicação do pai, e pelo adoração que tinha por ele não
ousava ser moleque demais e pegar a pipa escondido. Continuava adorando o pai e
adorando empinar suas pipas, continuava sendo o melhor, e continuava sua vida
correndo de pés descalços pelo morro, sobre o chão de terra batida.
Mas um dia
os policiais chegaram no morro mais nervosos do que de costume. Chiquinho até
teve de ir correndo para casa, com toda aquela confusão, a mando dos amigos de
seu pai. Chegou correndo em casa, e ainda sem entender nada. Foi a primeira vez
que sentiu medo.
Seu pai
chegara apressado, apreensivo, batendo a porta e correndo ao guarda-roupa. Daí
que o rosto de Francisco se iluminou, e o medo sumiu de repente: seu pai
voltara com a “pipa mágica”, deu nas mãos de Chiquinho, e disse, com aquele
mesmo sorriso tranqüilo de bom negro:
-
Vai,
Chiquinho! Hoje é o seu grande dia!
O garoto
correu como nunca até o topo do morro, onde só seu pai podia ir com a pipa. Mas
correu não somente porque seu pai pedira que fosse rápido, mas porque estava
tão entusiasmado em empinar a pipa de seus sonhos que, pés descalços sobre o
chão de terra batida da favela, num piscar de olhos estava sorrindo, começando
a empinar a “pipa mágica” de seu pai.
Mas foi por
pouco tempo. Um policial nervoso subiu ao topo do morro e tomou à força a pipa
de Chiquinho, que implorava àquele homem grande que devolvesse a pipa, porque
senão seu pai iria ficar muito bravo. O policial nem respondeu, pegou a pipa
antes de Chiquinho começar a empinar, e a fez em mil pedaços sobre o chão de
terra batida, no topo do Morro do Querubim.
Chiquinho
ficou desesperado, e não sabia fazer nada mais que chorar a caminho de casa.
Pela segunda e última vez, sentiu medo, agora de seu pai. Não conseguira
completar a missão, e perdera a pipa mágica de seu pai. Andava meio atônito por
causa do desespero entre toda a confusão, policiais correndo e atirando.
Chegou em
casa ainda com lágrimas de moleque correndo o rosto, sem saber o que dizer ao
pai. Foi quando viu sua mãe, abraçada com o irmão caçula de um ano, sentada na
cama. Ela também chorava muito.
-
Mãe,
desculpa, não foi culpa minha, ele era maior que eu – disse Chiquinho, voltando
a soluçar com o choro.
-
O
que você está falando, filho? – perguntou a mãe, também chorando muito e sem
entender o que queria dizer Chiquinho.
-
Não
foi culpa minha, mãe. Eu fiz o que o pai pediu, fui no topo do morro com a pipa
dele, mas o homem grande tomou da minha mão e rasgou. Não chora não, mãe, eu
não tive culpa. Me desculpa, me desculpa...
Demorou um
tempo pra Chiquinho entender que sua mãe chorava porque, naquela tarde, a
polícia tinha chegado mais nervosa que o normal, e que por isso seu pai pedira
que ele fosse empinar a pipa vermelha no topo do morro pra avisar aos morros
vizinhos da mega operação policial. Demorou para Chiquinho entender que a mãe
chorava a morte de seu pai, atingido por uma “bala perdida”.
E não
demorou muito toda aquela vida de moleque que passou em sua cabeça como um
flashe, naquela loja de brinquedos, quando viu uma grande pipa branca decorando
um canto. Ao lado, viu o rosto de um garotinho assustado com a cena que via:
Chiquinho Querubim apontando uma arma pra a moça que agarrava. Olhou o rosto do
menino, ao lado do pai bem vestido, segurando um brinquedo novo que acabara de
comprar, e viu sua vida de moleque na favela passar como um flashe em sua
memória.
Não demorou
para Chiquinho entender que estava ali porque uma “bala perdida” tinha acertado
seu pai. Não demorou para entender que o garotinho assustado ao lado do pai
poderia ser ele, e que uma bala perdida poderia acertar seu pai de novo. Não
demorou para Chiquinho se arrepender do que fazia, e estender o braço esquerdo
para a moça refém ir embora, e o direito para soltar a arma e, enfim, se
render. Não foram mais que dois segundos, e o atirador de elite não entendeu e
também não demorou: um tiro certeiro na cabeça de Chiquinho Querubim.
“Quando o assaltante ia matar a
refém e mais pessoas dentro da loja de brinquedo, armou-se o tiroteio e,
segundo a polícia, uma bala perdida atingiu o assaltante. A polícia ainda
informou que o assaltante era o perigoso Chiquinho Querubim, procurado pela
polícia por roubo e tráfico de drogas. Nenhum refém acabou ferido, e a polícia
fez o seu trabalho, poupando hoje os reféns da loja de uma cena mais trágica.
Encerramos nossas transmissões.”
A última
cena da televisão foi a grande pipa branca da loja manchada do vermelho-sangue
de Chiquinho Querubim, que estava morto porque era o assaltante. Era
assaltante, porque um dia foi vítima. Mas a televisão, os policiais, os reféns
e toda a multidão na sua frente não sabiam, e nunca viriam a saber. Já era a hora da novela das oito.
CRiga.
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