terça-feira, 2 de agosto de 2016

A pipa mágica

“São sete e meia da noite, e a situação na loja de brinquedos no centro do Rio continua a mesma. A polícia já cercou o local, e o único assaltante que não conseguiu fugir ainda mantém uma moça como refém. Ele segura a moça com o braço esquerdo e a arma na mão direita. O clima é tenso, e o comandante ainda negocia a rendição com o rapaz, que aponta a arma na cabeça da refém. Ele parece estar bastante nervoso, e a polícia pede calma. O rapaz aparenta não passar dos dezesseis anos de idade, e chegam informações de que mora no Morro Querubim, na Zona Sul do Rio. Policiais de elite estão aguardando o momento certo para disparar, caso o rapaz não se entregue. A situação é tensa, e a qualquer momento voltamos com mais informações.”

Naquele momento, mesmo com todos os flashes, câmeras, policiais e multidão na sua frente, Francisco César da Silva, 15 anos de idade, vulgo “Chiquinho Querubim”, não estava com medo. Estava revoltado por seus companheiros tê-lo abandonado ali, e ele ser obrigado a tomar um refém para tentar se safar daquele assalto.

Não tinha medo de nada, a vida não deixava. Era a primeira vez que cometia um crime grave – antes, somente pequenos furtos. Decidiu “pegar pesado” porque ninguém dava chance a ele, a vida era uma merda no morro, estava cansado do leva e traz que fazia para traficantes. Não que sentisse raiva, afinal descobrira, de forma trágica, que seu pai fora um deles. Nunca sentiu raiva de seu pai, e os únicos que apoiaram sua família de mais cinco irmãos foram os “colegas” de seu falecido pai.

Na verdade, tinha adoração por seu pai. Quando criança, moleque de uns seis anos, corria descalço ao encontro do pai quando ele subia o morro com seu sorriso tranqüilo de bom negro. Logo, voltava a correr com os pés fortes sobre o chão de terra batida da favela, até quase o topo do morro, onde empinava suas pipas.

Chiquinho era o melhor na pipa. O melhor de todos os garotos do morro. Fazia as mais bonitas, era craque no cerol e cortava todos com uma habilidade só dele. De nada mais entendia, nem de pobreza ou crime, só entendia de pipa. Inspirou-se em seu pai, que tinha uma pipa vermelha enorme, e algumas vezes, entre aquela coisa confusa de policiais subindo o morro, ia no topo – onde só ele podia ir – e botava no ar aquela pipa linda, com as letras “CV” no centro. Para Chiquinho, o pai mandava mensagens secretas sobre pipas e cerol aos morros vizinhos quando soltava a pipa. Para ele, era uma espécie de “brincadeira secreta”: quando os policiais subiam o morro e entravam nas casas revirando tudo, seu pai ia se distrair “conversando com os outros morros” através daquela pipa enorme, linda e vermelha.

Daí que Chiquinho morria de vontade de empinar aquela pipa vermelha, enorme e linda, do mesmo lugar no topo do morro onde seu pai empinava naqueles dias confusos. Só que seu pai não emprestava a pipa, nem deixava o filho empinar as suas pipas naquele local, no topo do morro.

-          Deixa eu empinar, pai, deixa?
-          Não, Chiquinho. Essa pipa não pode.
-          Por que não?
-          Ela é diferente. Não é pipa de brincar como as que você faz e empina. É uma pipa mágica!

Chiquinho não entendia nada da explicação do pai, e pelo adoração que tinha por ele não ousava ser moleque demais e pegar a pipa escondido. Continuava adorando o pai e adorando empinar suas pipas, continuava sendo o melhor, e continuava sua vida correndo de pés descalços pelo morro, sobre o chão de terra batida.

Mas um dia os policiais chegaram no morro mais nervosos do que de costume. Chiquinho até teve de ir correndo para casa, com toda aquela confusão, a mando dos amigos de seu pai. Chegou correndo em casa, e ainda sem entender nada. Foi a primeira vez que sentiu medo.

Seu pai chegara apressado, apreensivo, batendo a porta e correndo ao guarda-roupa. Daí que o rosto de Francisco se iluminou, e o medo sumiu de repente: seu pai voltara com a “pipa mágica”, deu nas mãos de Chiquinho, e disse, com aquele mesmo sorriso tranqüilo de bom negro:

-          Vai, Chiquinho! Hoje é o seu grande dia!

O garoto correu como nunca até o topo do morro, onde só seu pai podia ir com a pipa. Mas correu não somente porque seu pai pedira que fosse rápido, mas porque estava tão entusiasmado em empinar a pipa de seus sonhos que, pés descalços sobre o chão de terra batida da favela, num piscar de olhos estava sorrindo, começando a empinar a “pipa mágica” de seu pai.

Mas foi por pouco tempo. Um policial nervoso subiu ao topo do morro e tomou à força a pipa de Chiquinho, que implorava àquele homem grande que devolvesse a pipa, porque senão seu pai iria ficar muito bravo. O policial nem respondeu, pegou a pipa antes de Chiquinho começar a empinar, e a fez em mil pedaços sobre o chão de terra batida, no topo do Morro do Querubim.

Chiquinho ficou desesperado, e não sabia fazer nada mais que chorar a caminho de casa. Pela segunda e última vez, sentiu medo, agora de seu pai. Não conseguira completar a missão, e perdera a pipa mágica de seu pai. Andava meio atônito por causa do desespero entre toda a confusão, policiais correndo e atirando.

Chegou em casa ainda com lágrimas de moleque correndo o rosto, sem saber o que dizer ao pai. Foi quando viu sua mãe, abraçada com o irmão caçula de um ano, sentada na cama. Ela também chorava muito.

-          Mãe, desculpa, não foi culpa minha, ele era maior que eu – disse Chiquinho, voltando a soluçar com o choro.
-          O que você está falando, filho? – perguntou a mãe, também chorando muito e sem entender o que queria dizer Chiquinho.
-          Não foi culpa minha, mãe. Eu fiz o que o pai pediu, fui no topo do morro com a pipa dele, mas o homem grande tomou da minha mão e rasgou. Não chora não, mãe, eu não tive culpa. Me desculpa, me desculpa...

Demorou um tempo pra Chiquinho entender que sua mãe chorava porque, naquela tarde, a polícia tinha chegado mais nervosa que o normal, e que por isso seu pai pedira que ele fosse empinar a pipa vermelha no topo do morro pra avisar aos morros vizinhos da mega operação policial. Demorou para Chiquinho entender que a mãe chorava a morte de seu pai, atingido por uma “bala perdida”.

E não demorou muito toda aquela vida de moleque que passou em sua cabeça como um flashe, naquela loja de brinquedos, quando viu uma grande pipa branca decorando um canto. Ao lado, viu o rosto de um garotinho assustado com a cena que via: Chiquinho Querubim apontando uma arma pra a moça que agarrava. Olhou o rosto do menino, ao lado do pai bem vestido, segurando um brinquedo novo que acabara de comprar, e viu sua vida de moleque na favela passar como um flashe em sua memória.

Não demorou para Chiquinho entender que estava ali porque uma “bala perdida” tinha acertado seu pai. Não demorou para entender que o garotinho assustado ao lado do pai poderia ser ele, e que uma bala perdida poderia acertar seu pai de novo. Não demorou para Chiquinho se arrepender do que fazia, e estender o braço esquerdo para a moça refém ir embora, e o direito para soltar a arma e, enfim, se render. Não foram mais que dois segundos, e o atirador de elite não entendeu e também não demorou: um tiro certeiro na cabeça de Chiquinho Querubim.

“Quando o assaltante ia matar a refém e mais pessoas dentro da loja de brinquedo, armou-se o tiroteio e, segundo a polícia, uma bala perdida atingiu o assaltante. A polícia ainda informou que o assaltante era o perigoso Chiquinho Querubim, procurado pela polícia por roubo e tráfico de drogas. Nenhum refém acabou ferido, e a polícia fez o seu trabalho, poupando hoje os reféns da loja de uma cena mais trágica. Encerramos nossas transmissões.”

A última cena da televisão foi a grande pipa branca da loja manchada do vermelho-sangue de Chiquinho Querubim, que estava morto porque era o assaltante. Era assaltante, porque um dia foi vítima. Mas a televisão, os policiais, os reféns e toda a multidão na sua frente não sabiam, e nunca viriam a saber.  Já era a hora da novela das oito.

CRiga.
 

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