Aquela
talvez fosse a última vez no dia em que entrava no apartamento recém adquirido.
Depois de um dia inteiro fazendo a mudança – que, na verdade, não tinha grandes
volumes –, me sentaria à pequena sala já mobiliada, e talvez tomasse mais uma latinha
de cerveja. Logo que entrei, o velho e bom “Seu Carlos” estava em sua poltrona
predileta, ainda nova porque comprara há pouco tempo, desde que já não podia
mais dividir o sofá maior com sua esposa que morrera.
Ele
me olhou bem fundo nos olhos. Não era um olhar bravo nem decidido a fazer
qualquer mal. Era somente um olhar cansado, mas que em dado momento parecia ter
descoberto uma verdade própria que não podia mais lutar contra. Seu Carlos
estava com seu melhor terno, e me esperou sentar ao sofá maior, sempre me
acompanhando com a cabeça calva, a boca seca e o bigode simpático, volumoso e
grisalho. Sua velha e bela bengala de jacarandá estava apoiada no braço direito
da poltrona. Olhou as palmas das mãos calejadas, arrumou o resto de cabelo que
ainda existia, e pousou mais uma vez as mãos sobre os braços da poltrona. Suas
pernas estavam cruzadas ao tornozelo. Levantou a cabeça a mim e disse, de
maneira muito serena e aconchegante:
–
Sabe...
eu não deveria dizer isso, mas invejo vocês, que agora começam uma vida nova,
juntos, neste pequeno apartamento onde um dia me refugiei.
–
Sente
muitas saudades daqui, Seu Carlos?
–
Não...
quer dizer, sim! Vim para cá, trouxe alguns móveis da casa onde morava com
minha amada esposa, que morreu há alguns anos. Aqui eu reconquistei a paz,
depois de perdê-la.
Enquanto
Seu Carlos falava, fitava o teto e sorria também muito serenamente. Mais uma
vez voltou os olhos a mim, já sério, mas nunca com aparência severa:
–
Daí
que quando vejo vocês se mudando para cá, para o mundo que me refugiei e
reencontrei a paz, eu não me sinto muito bem.
–
Mas
o senhor também tem um belo novo lar...
–
Eu
sei. Sei bem que o lar que me espera é muito bonito, já me disseram. Ainda não
fui lá, estou com receios... É uma bobagem, eu sei, mas às vezes pareço querer
ficar...
–
O
senhor não atrapalharia aqui, mas acho que o senhor se sentirá melhor em sua
nova casa...
–
Não,
eu sei que não devo ficar. Não posso ficar aqui com vocês, esse apartamento já
não me pertence. É que a paz que construi aqui é difícil de deixar.
–
Eu
compreendo, Seu Carlos. Assim como compreendo que, com certeza, em seu novo lar
reinará essa mesma paz.
–
Será?
Tenho medo. Olha eu, um velho que já passou muitas coisas nessa vida, com
medo... Tive medo na hora mais difícil da minha vida, quando perdi minha esposa
e me sentia muito só. Eu chorava todos os dias, debruçado sobre nossa cama. Eu
orava por ela, mas sentia muito sua falta. Parecia que alma dela se negava a ir
embora daquela casa. Pouca coisa trouxe de lá para este apartamento, orei muito
mais forte no dia que deixei a casa, e encontrei de novo a paz aqui. Vivi o
resto dos meus anos sozinho aqui, mas feliz e com muita paz.
–
E
o senhor agora tem medo novamente?...
–
Sim,
um pouco. Mas, olha: da mesma forma que você tem certeza que minha nova casa
também há a paz que preciso, tenho certeza de que vocês dois encontrarão a paz
que procuram. Serão muito felizes, como eu fui.
–
Temos
então sua benção, Seu Carlos?
–
Claro
que têm! Glória e você serão muito felizes, podem ter certeza. O que me faltava
era sentar aqui pela última vez, e dizer a você o que nunca tive a oportunidade
de dizer: faça minha filha feliz, como eu fiz minha amada esposa feliz... Acho
que agora começo a recuperar a coragem de me mudar daqui. Acho que era isso que
me faltava. Muito obrigado!
Com
seu jeito de bom velho, Seu Carlos levantou-se apoiado em sua velha bengala de
jacarandá. Com as mãos apoiadas no topo dela, e com os pés juntos, me olhou
ternamente e sorriu o sorriso de sua paz. Virou-se, caminhou até a porta,
abriu, saiu, fechou e foi embora para sua nova casa.
Logo
depois entra Glória, com a última caixa de seus pequenos pertences. Ela pára em
frente à pequena sala, deixa a caixa ao chão, e senta comigo dividindo o sofá.
Depois de um beijo longo, vira-se para mim:
–
Nós
vamos ser muito felizes!
–
Eu
sei que sim!
Depois
ela se levantou, pegou a caixa ao chão e notou alguma coisa faltando na pequena
sala:
–
Onde
está aquela bengala de jacarandá que vimos aqui ontem?
–
Não
sei...
–
Papai
gostava muito dela. Acho que um de meus irmãos deve ter passado aqui e levado.
Tudo bem, com qualquer um deles que estiver, está em boas mãos! Quase tudo que
está aqui era dele, antes de morrer. Com o que tem aqui, já me sinto feliz! Com
certeza, nós e este apartamento têm a benção dele!
–
Sim,
meu amor! Com certeza!
CRiga.