quinta-feira, 6 de julho de 2017

O voo


A garota àquela hora já estava cansada de andar entre as ruas do Centro, de lá para cá, olhando vitrines desinteressantes e o chão. Aquele conjunto de ladrilhos que formava o mapa do Estado de São Paulo, em linhas retas, velho e azul como o metrô na Estação da Luz, bêbados, cheiro de mijo nas esquinas, cadê as lojas de discos que eu li a respeito?

Com seu coturno preto até o joelho, brinquinhos, cabelo preto preto até a nuca com tatuagem - de henna -, uma caveirinha, esqueletinho inteiro, bonitinha até. Logo acima do decotinho, sobre um dos seios que despontava durinho, outra tatuagem de henna, um beija-flor. Liberdade eu quero. Uma saia xadrez grande, cara como tudo que possuía. O menos caro que tinha era a idade: 16.

Não tinha amigos mais, decidira. Todos eles eram burguesinhos demais, raves, ecstasy, Dysney Word, carros importados, mendigos incendiados, prostitutas agredidas. Ela então resolveu um dia torrar a mesadona em roupas daquelas que as amigas não usavam. Tudo de grife, ficou uma “punk chic”, e pensava ser diferente.

Não chamou o motorista pra ir ao Centro, foi só, um táxi. Disseram um dia pra ela que aquele era um lugar “cool”, da moda, onde tribos urbanas se reconheciam. Como não tinha ninguém pra acompanhar, foi sozinha mesmo. Cansou de caminhar, sentou no chão, tipo rebelde. Cabeça baixa, sem absolutamente nada de criativo na cabeça. Era magrinha, bonita, olhos pintados a lápis preto, batom preto, um olhar de pureza de novela das oito e aquelas famílias com sotaque carioca, da Tijuca.

Surpreendida aos chutes, viu moleques descalços tentando roubar sua mochila. Gritou mamãe, papai, não havia ninguém, apenas a multidão que passava acostumada às cenas de moleques roubando esses drogados do centro da cidade. Ninguém fazia nada. Era normal, deixa a vida seguir assim. Os moleques aos xingos, sua puta, vaca, passa logo essa merda. Um deles deixou cair o cachimbo de crack. Foram embora andando, dando risada, gestos obscenos.

A bolsa se foi, ela caída no ladrilho da realidade do centro de São Paulo. Isso não era cool. Levantou cambaleante, chorando, sangrando no canto da boca. Não tinha grana nem para pegar metrô e ônibus de volta, nem sabia voltar. O celular com câmera fotográfica foi junto com a bolsa. Sentou de novo chorando, agarrou o cachimbo de crack, nem sabia do que se tratava.

“Olha aquela menina, tão novinha se drogando”, ouviu. Quando virou-se, duas freiras comentando. “Me ajuda, não sou drogada, não sou”. “Sai, sai!..”, as freiras se livrando das mãos dela.

Parou olhando o nada, assustada. Não sabia nem ligar a cobrar de um orelhão. Queria mesmo era saber voar pra fugir dali. Como quis poder voar, agressiva contra o céu, contra o mundo, contra todos.

“Ta perdida, filha?”. Era um homem dos seus 40 anos, camisa manga curta, gravata, óculos de aros pretos, tipo corretor da bolsa de valores. “Tou sim, me ajuda”, contou toda a história. Ele pagou um refrigerante para acalmar. “Venha, vou levar você pra casa”.

No carro, desviou caminho. Rua erma. Olhar de brasa, quase babava, foi com todos os braços e pernas pra cima dela, abrindo a braguilha. Gritos dela abafados por um tapa, ela desmaiou. Escuro total.

Acordou num hospital, hematoma, muita dor. Havia sido jogada numa calçada, um gari a encontrou caída e desacordada. Pela tevê já haviam identificado a garota, fugiu de casa, revoltada com o mundo cor-de-rosa. “Seus pais estão a caminho, fique calma agora”, uma voz de enfermeira.

Não ficou. Chorou, chorou desesperadamente. Gritava não por causa da dor no corpo inteiro, rosto, braços, pernas, entre as pernas. Era uma dose tão cavalar de realidade que a dor doía em sua alma. Antes cabeça vazia, agora cheia de terror. Soluçava. Minutos depois foi baixando o tom, baixando aos poucos, fechando os olhos. Tentou buscar algo pra continuar, não encontrou.

Papai e mamãe chegaram. Férias da escola, roupa nova, tratamento rápido, uma viagem pra Europa. Um lago em Paris, a cidade das luzes, sobre uma bela ponte, alta. Melhor lugar não havia.

Cabeça vazia que a cidade das luzes não iluminou. No escuro, na marginal lá embaixo, a mesma saia xadrez manchada, no bolso um cachimbo guardado, usado há pouco. Agora nua, branquinha, pelos pubianos ainda ralinhos e seios pequenos, biquinhos. De pé sobre o peitoril da ponte, braços abertos no frio europeu, mais imagens confusas de moleques descalços gargalhando, um carro abafado, um corpo de homem mais velho sobre ela de lá pra cá. Um hospital. E mamãe e papai pagando viagem, se livrando do problema, sequer perguntaram porque estava ela tão longe de casa àquele dia confuso no Centro. Um beijinho frio no aeroporto, se cuida, aproveita, tem dinheiro na sua conta pra fazer o que você quiser.

E, pela primeira vez, quis de fato alguma coisa. Nada contra o mundo, nada contra ninguém. Ali, naquela ponte, em Paris, nua sobre o peitoril, melhor lugar não havia. Só queria aprender a voar.



CRiga.


Um comentário:

  1. Consegui visualizar ..era como se estivesse presente em cena... incrível...

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