segunda-feira, 17 de abril de 2017

A canção da chuva


Quando ele decidiu atravessar o oceano louco, era pra fugir mais de si do que da ausência de si. Era aquela cidade cinza que piorava as coisas, principalmente quando o inverno chegava mais frio do que em qualquer outro lugar que já esteve. Se bem que, atravessando o oceano louco, o frio talvez fosse maior, aquele frio que a gente vê pela tevê em Londres, Paris e outros lugares que parecem se renovar a cada sonho nosso de estar lá. “Mas aquele frio tem charme, é um frio que a gente se sente protegido, por isso eu vou!”

Seu sonho também era renovado, deixava para trás o que de si não gostava, culpa daquela solidão das capitais. Resolvidas todas as pendências burocráticas – e até algumas parecidas com as emocionais também –, estava pronto pra ir, castigar aquela cidade cinza que nunca lhe dera nada. Nem mesmo aquele amor prometido a cidade lhe presenteara, aquele amor que faz a gente fincar o coração mesmo numa terra estranha e sem graça, por amor valia a pena qualquer coisa. Mas o amor era só uma promessa, uma piada estranha e sem graça, era prato feito de restaurante, enlatado de supermercado, um rock de gente séria e sem sangue – “É tudo gente vampira!”

Passagens compradas, data marcada, só voltaria para visitas quando estivesse seguro que vencera a cidade cinza –  ou talvez nem voltasse. “Pra quê? Ninguém me espera, não espero mais ninguém”. Na correria de arrumar as últimas coisas, entre barbeiro, roupas novas e um som pra curtir – disso não dava pra abrir mão! –, conheceu uma garota, mais uma garota da capital. Sorriu, disse oi, trocaram nomes e telefone, e rolou como sempre acabava rolando com todas as garotas.

Só que no outro dia ela ligou, fez visita, arrumou o apartamento bagunçado dele – ele dividia o aluguel com mais dois amigos –, sorriu, chorou, cantou, bebeu, beijou, e não esqueceu! Foram dias assim, os últimos dias, intensos como a despedida de sua terra natal, fazia muito tempo. Mas era como se agora a despedida não fosse tão boa como era até então, quando fugir era o que valia.

Ela era incrível! Chorava com música bonita, ria das atrapalhadas dele, sorria pertinho da boca dele como que respirando o ar de seus pulmões, fechando os olhos e tocando os lábios macios, aos poucos, até o beijo suave. Depois, puxava ele e tirava a roupa, corpo lindo, e eles faziam o amor que ele não conhecia. Depois, fumava um baseado, colocava outro CD, cantava junto com os olhos fechados, a cabeça balançando, como se ninguém estivesse vendo.

Mas ele via mais do que queria ver, ele via o amor que a cidade cinza um dia prometeu. “Mas você vai embora, que pena, então vamos curtir um pouco mais...” Com ela, ele esquecia que teria de atravessar o oceano louco, ser “feliz”, simplesmente. “O que é ser feliz, então?”, estava confuso, ficou com raiva de si. “Tá tudo pronto, gastei toda minha grana nessa viagem, isso só pode ser uma brincadeira do destino.” 

Não era, e pegou-se pensando nela, na música dela, no sorriso dela, no seu corpo nu, sentada à cama, balançando a cabeça com os olhos fechados, acompanhando “aquela música da chuva do Led”, enquanto lágrimas rolavam de seus olhos cerrados no final, quando o Plant gritava “but I know, that I love you so...”(*). Pra ele, nada daquilo era igual às outras pseudo-aventuras da cidade cinza. A coisa ficou mais séria, quando até chegou a brigar com os amigos do apartamento porque bagunçaram tudo o que ela tinha arrumado. Ele a defendeu, e ficou completamente sem defesa...

O pior que, na verdade na verdade, ele queria era novos ares principalmente porque acreditava no amor, e a cidade cinza não lhe dava a oportunidade de amar ninguém. Eram todas as aventuras filmes sem nexo, em preto e branco, chatos demais. “Aqui não é o meu lugar”, repetia pra si como um mantra, pra se convencer, e culpava os inocentes de serem demais culpados cibernéticos, porque nunca nunca, “que droga!”, havia sentido o calor daquele sorriso dela, daquele beijo dela, daquele choro, daquele riso... Nunca tinha ouvido uma música tão bonita, ou nunca tinha percebido como eram bonitas as músicas do Led Zeppelin... E nunca foi tão mais frio, quando chegou o dia de partir... “Maldita cidade”, só lhe dera o grande amor quando decidiu abandoná-la com seu cinza, sua semgracisse, seu frio seco e morto.

Pernas moles no hall do aeroporto, ela disse que viria pra se despedir. “Não vou resistir...”, pensava que poderia jogar pro alto essa coisa de atravessar o oceano louco. “Chance assim não deve haver nem em outro continente...” Mas ela não vinha, demorava demais, e já chegava a hora de ele embarcar. “A gente precisa conversar pra eu me convencer (porra, isso é música do Ritchie), por que ela não vem logo? Como vou ter certeza? Como vou embarcar nessa? Como foi que eu embarquei nessa?”

E ela não vinha, “ela não vem... melhor assim”. E seguiu o corredor, já era a segunda chamada de embarque. Aquele dia chovia mais do que os outros dias anunciando o inverno. “Foi tudo um sonho. Amor assim não pode existir, justo na hora de partir”. A chuva desafiava a vidraça do aeroporto, e cada passo passava mais firme, mais compassado. “Agora não dá para voltar atrás. Adeus, adeus!...”

Pela janelinha redonda daquele boing enorme, viu duas mãos grudadas nas janelas do hall do aeroporto, onde as pessoas se despediam dos passageiros, ou simplesmente ficavam vendo aviões decolarem. Mãozinhas imóveis, ela não se despedia, só olhava, não ria nem chorava. A cidade ficava mais cinza, e ele quis acreditar que são as pessoas que colorem seus dias, ele podia colorir. Só que então por que ele nunca se esforçou nas tintas que tinha, sempre preferiu se defender e culpar o mundo?

Agora, o apocalipse calado, olhando do hall, palmas estateladas manchando o vidro com suas impressões digitais, fones de ouvido e um walkman, e ele tinha a impressão que aquilo não era uma despedida. Era um filme, um filme cuja única cor eram seus olhos brilhando verdes do hall, era seu vestido chita azul e seu casaco marrom de lã de ovelha – a chuva, o inverno! “Que inferno! O avião podia quebrar, forçando mais uma espera dos passageiros por pelo menos meia hora, que fosse, o suficiente pra eu me convencer.”

As turbinas ligaram, o avião começou a taxiar pela pista, preguiçoso, em câmera lenta. Uma cabecinha acompanhava lá do hall, sem sorrir, sem chorar. E ele viu então os olhos dela se cerrarem, e a cabecinha acompanhar uma canção. Na fita cassete do walkman dela, o Led rolava triste, na explosão das guitarras e bateria – “I felt the coldness of my winter/I never thought it would ever go/I cursed the gloom that set upon us/But I know, that I love you so/But I know, that I love you so...” (*).

E ele viu os olhos cerrados, viu mais uma vez as lágrimas dela que corriam no final do refrão, enquanto o bichão de asas de metal levantava. “But I know, that I love you so”. “Adeus, adeus”, este filme não poderia terminar diferente, com chuva e cinza. “Adeus, minha música sempre foi triste, triste assim...” A cidade cinza sempre foi triste, ele sabia. O adeus silencioso e imóvel também era. “Mas sei que te amo muito... adeus, adeus...” Um dia a tristeza vai passar, ou vai voltar, doer, quem sabe... “Agora, só o velho continente me espera, com um novo rock and roll. O velho continente precisa ser novo, novo rock and roll!”

No hall, ela secou as lágrimas com as costas das mãos macias, e sentia-se tão rouca e cansada como Plant no final da canção. A música cessou, e a chuva cessara também naquele entardecer, enquanto o avião levantava vôo, levava ele pro outro lado do oceano, enquanto o bichão ficava cada vez menor e sumia no pôr-do-sol, um sol brilhante, onde foi o frio?

“O frio foi embora, e ele também já se foi”. No lado B do cassete no walkman dela, já rolava um velho rock and roll. “As pedras vão rolar. As pedras precisam rolar!...”

(*) “The Rain Song” – Led Zeppelin


CRiga.


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