Meu avô era o exemplo vivo de que não há
tempo para se deixar de viver. Nunca perdia a mínima chance de sair de casa,
num bom passeio. Embora diabético, suas mãos enrugadas e companheiras
assaltavam a geladeira e o armário à procura de doces, durante as tardes em que
ninguém o vigiava. Nem por isso era tido como alguém que cometia um crime
contra a saúde – ou mesmo contra os doces nunca tão bem guardados dos netos,
que sempre quando chegavam ao lugar onde guardaram os doces, perguntavam bravos:
“cadê meu doce que deixei aqui????” Seu Inocêncio não respondia, e os netos
olhavam bravos, mas sem ira.
Seu Inocêncio não tinha maldade. Quando
fuçava nos armários e geladeiras, sabia que não havia muito para se preocupar,
nem mesmo com a diabetes, que o privou de tanta coisa durante tanto tempo antes
de estar ali, no vaivém na casa sobre sua cadeira de rodas. Antes de perder uma
das pernas, amputada por um problema sério de saúde, quando não tinha a carona
de algum filho, ia mesmo sozinho passear pelas ruas da vizinhança, com seu bom
sorriso de paz. Por vezes só ficava em frente à casa, olhando a rua, sentado
numa cadeira.
Morávamos eu, minha irmã mais velha, minha
mãe – que era quem trabalhava em casa – e minha vó. Quando um tio nosso passava
lá em casa de carro, nos tempos em que Seu Inocêncio ainda tinha suas duas
pernas, era quase sempre a mesma cena cômica: ele ficava de ouvido na conversa
entre minha vó e algum tio, se fazendo de distraído. Por vezes ouvia que dali
esse nosso tio iria a outro lugar, na casa de alguém ou no supermercado; como
quem não quisesse nada, Seu Inocêncio ia pra o quarto; ao ouvir o “tchau” do
tio, ele pegava seu velho chapéu atrás da porta e ia com seu passo de velhinho
atrás, alcançando o carro já saindo. “Ara, Inocêncio, larga disso!”, gritava
minha vó, brava com a atitude meio de intrometimento de meu avô. Por vezes,
vencia e arrancava um bom passeio; por outras, era convencido que melhor era
ficar daquela vez. Nunca ouvi ninguém dizer, simplesmente, “o senhor não vai”.
Sempre tinha uma explicação, do tipo “olha, hoje é melhor o senhor não ir,
porque não vai ser um bom passeio, tarará, tarará...”.
Isso porque, inegavelmente, embora
encostado em sua velha poltrona de couro marrom, na cadeira de rodas ou mesmo
sobre sua cama no canto da sala (de onde era mais fácil sua sobrevivência
depois de ter sua perna amputada), Seu Inocêncio ainda era o líder daquela
família, que se reunia em quase todos os finais de semana em nossa casa. Era
sempre aquele clima de família unida, feliz, primos, primas, tios e tias. Isso
ficou mais que claro depois que ele morreu: foram raras as vezes que toda a
família se reuniu depois de sua morte. Embora ainda com contatos entre si, e
algumas reuniões e visitas, nunca mais a família foi a mesma coisa.
Em uma das casas que morávamos, ele
“morava” na sala. Recém amputada sua perna, enquanto eu assistia à TV à noite,
com a luz apagada para não incomodar, ele gemia de dor (“ai, ai, ai...”), e
chegava até a assobiar para “disfarçar” tamanha dor. Passou a ter um balde
vermelho ao seu lado, onde jogava a urina de sua comadre; tomava banho e fazia
suas necessidades biológicas na sala, com auxílio de minha vó. Eram cenas que
aprendemos a aceitar, e até nos acostumamos. Mas quem iria saber lá no íntimo
de Seu Inocêncio, o que ele sentia... Nem mesmo em sua velhice poderia
desfrutar de um pouco de privacidade e paz? E sua dignidade, onde é que ele a
disfarçou? Hoje isso dói mais em mim do que naquele tempo, quando eu mal
entendia essas coisas...
Tanto mal entendia que, sem maldade,
enquanto ele estava deitado em sua cama, eu por vezes sentava em sua cadeira de
rodas e saía pela casa, brincando de ônibus. Nunca por maldade, e sim porque eu
realmente achava divertido. Meu avô e minha vó nunca me recriminaram, assim
como minha mãe. Também brincava de bola de meia pela casa, à noite enquanto
esperava minha mãe chegar do trabalho. E Seu Inocêncio, mesmo com algumas
boladas que tomava por acidente, nunca nunca reclamou. Acho, na verdade, que
ele queria mais era aquilo, pelo menos um pouco de vida moleque dentro da casa
fria para que tudo aquilo não caísse no adultismo que ele mesmo deixara para
trás. Ele queria menos tristeza em seu canto da sala.
Depois mudamos para uma casa maior, da
minha madrinha. Nos fundos, havia um velho escritório de meu tio, onde
instalamos o quarto de meu avô. Um quarto só seu, e minha vó dormia com ele
somente quando ele não passava bem. Eu tinha um quarto só meu, em cima, e minha
irmã outro, junto com minha mãe. Para elas descerem, precisavam passar pelo meu
quarto, mas eu nunca me importei, porque eu tinha um quarto só meu.
No quarto improvisado
a meu avô, ele podia fazer o que quiser. Lá, se pelo menos não tinha sua
dignidade totalmente restabelecida, tinha sua privacidade. Num canto da cabeceira
da cama, ele tinha uma caixa de sapatos onde guardava pequenos pertences como
pente, navalhas para barbear, perfumes, presentes e pequenos papéis (pequenos
segredos, talvez, para se sentir mais vivo), e outras pequenas bugigangas. Era
sua caixinha de utilidades. Eu a considerava sua caixinha sagrada, tão sua como
sua dignidade e privacidade. Tão necessária quanto um moleque que não mais
brincava em casa.
O tempo passou e comecei a trabalhar, e por
isso já não mais brincava dentro de casa, nem “brigava” por causa do doce
roubado. A bem da verdade, era difícil ver meu avô durante os dias de semana,
porque eu trabalhava no dia e estudava à noite. Numa sexta-feira de férias
escolares, saí às seis da tarde de meu emprego, com três bombons “sonho da
valsa” dados pelo meu patrão. Antes de chegar em casa, já havia comido um; dei
o outro para minha vó, que assistia novela na sala; o outro, dei para meu avô,
sentado em sua cadeira de rodas, tomando uma sopa, lentamente, à mesa também na
sala, de costas à TV e de cabeça baixa.
Ele estava com um rosto diferente, meio
entristecido. “O que foi, vô? Tá sentindo alguma coisa”, perguntei,
instintivamente. “Ele não está bem hoje. Tá sentindo dores...”, minha vó
respondendo. Olhei Seu Inocêncio, estendi o terceiro bombom para ele, e disse:
“trouxe para o senhor, mas é melhor não comer agora então, já que não está se
sentindo bem. Tome, guarde, e só coma quando estiver melhor, viu...”,
recomendei, sabendo que a recomendação era uma perda de tempo, pois do jeito
que meu avô gostava de doces, ia comer logo logo. Eu sabia disso...
Na verdade, eu não sabia de muitas coisas
naquela minha idade... Não sabia que a morte chegava às vezes pronunciada numa
noite de sexta-feira, silenciosa, de madrugada. Não sabia, não entendia o que significava
minha vó chamando minha mãe lá de baixo, minha mãe descendo correndo e gritando
no quarto de meu vô; depois minha irmã passou pelo meu quarto, e perguntei, com
medo da resposta, o que estava acontecendo. “Acho que o vô morreu...”,
respondeu.
Chamamos o vizinho, e colocamos Seu
Inocêncio no banco da frente do carro, desacordado. Somente eu fui junto ao
pronto-socorro, e fiquei lá esperando a resposta do médico. “Sinto muito, ele
chegou aqui já morto...”. Fiz com a cabeça positivamente que entendia, sentei
num banco, mas não chorava. Aquilo ainda não tinha entrado na minha cabeça
direito. A morte e o seu significado ainda não fora concebida em mim.
Um tio chegou uns vinte minutos depois no
pronto-socorro. Perguntou sobre meu avô (seu pai), se estava vivo ainda.
Respondi novamente com a cabeça, desta vez, negativamente. Ele fez que
entendeu, também com a cabeça. Era talvez uma espécie de aceitação esses
movimentos de cabeça e as respostas em monossílabos. Ele não chorou também e
voltamos à nossa casa.
O sábado foi inteiro
na organização do enterro. Minha vó não conseguiu ir à cova destinada a Seu
Inocêncio, no cemitério do Morumbi, dar o último adeus depois do velório. Um
tio meu me disse para ir junto de minha mãe, dando apoio a ela – era a única filha
desquitada, e eu assumira um semi-papel de companheiro, de filho homem, mas
menino.
Continuei minha “missão”, sem chorar. Era
estranho, porque eu não segurava as lágrimas: eu simplesmente ainda não tivera
vontade de chorar. Vendo a família toda reunida pela última vez naquela tarde
de sábado, com comes e bebes, e todos já bem melhores, me sentia bem também. No
final da noite, todos foram embora, e dormiram seus sonos de saudade. Cada um o
seu, menos eu, que dormi de cansado mesmo.
Domingo. Decidi ir arrumar as coisas de Seu
Inocêncio, as suas poucas coisas sobre a cama, já que a roupa seria doada, mas
alguns pequenos objetos deveriam ser guardados de recordação. Peguei sua
caixinha sagrada. Fui retirando aos poucos os objetos que pretendíamos guardar.
Quase tudo retirado, embaixo do seu velho lenço azul jazia aquele embrulho cor
de vinho, brilhante: o sonho de valsa.
Haveria neste mundo, e depois daquela
sexta-feira, ser humano que não chorasse agora? Seu Inocêncio, talvez pela
primeira vez, preferiu seguir um conselho e deixar de fazer o que mais gostava:
comer um doce. Me senti mal, porque havia dito para ele não comer o bombom
naquela noite, pensando que ele ia comer mesmo assim. Eu não sabia de nada, e,
de uma só vez, eu soube o que a morte de alguém amado significava, ali,
segurando o sonho de valsa que Seu Inocêncio preferiu não comer na sexta-feira.
“Por que não comeu, vô? Era melhor ter partido com o gosto doce na boca, com o
último doce que poderia levar da vida.” Abri o bombom, e, aos prantos, comi
como que pedindo ao meu vô, lá de cima, que sentisse o gosto que eu sentia. Que
sentisse que eu também sentia saudades suas.
E talvez por me lembrar assim de meu avô,
“roubando doces”, “forçando” passeios, é que sempre quando sonho com ele, Seu
Inocêncio está de pé, grandão, bonito, com suas duas pernas fortes, e aquele
velho e bom sorriso de vô. O gosto daquele sonho de valsa ainda permanece em
minha boca, assim como as boas lembranças que tenho dele. Por isso, na vida
vale a gente ser moleque um pouco, jogar bola com o filho, comer muito doce com
ele, sorrir sempre e chorar quando for preciso. E nunca, nunca, desperdiçar a
chance de um bom passeio, ou comer um bombom.
Agora eu sabia, não tudo, mas o suficiente
para um dia partir ou ver partir, sem precisar dizer “não coma o doce, não vá
passear”. Agora eu sabia, mais do que nunca, que não há tempo para se deixar de
viver. E foi Seu Inocêncio que me fizera entender.
CRiga.