quinta-feira, 12 de maio de 2016

Vermelha flor


Desviava da multidão na praça num domingo de sol, enquanto todos tomavam sorvete. Cansado de trabalhar aos fins-de-semana sem receber sequer um centavo a mais, tentava esquivar-se na sombra esperando o momento certo pra ir embora, a hora em que o chefe virasse de costas e não mais perguntasse: “Você entrevistou o prefeito?”. Mil vezes disse sim, como mil vezes já entrevistara o prefeito. Bastava apenas, ao redigir a reportagem, mudar as datas e os lugares, pois o discurso era sempre o mesmo.

Aliás, seus dias eram sempre os mesmos havia muito tempo. Tudo igual. Ir embora pra quê, então? Melhor naquelas circunstâncias era ouvir o bosta do prefeito. Ir pra casa, não havia sentido. Beber o resto da cerveja da geladeira, ouvir alguma música dos velhos tempos, e dormir sozinho de novo, sem ninguém. Para ele, este já era seu banal cotidiano.

Mas ao tentar quase que desesperadamente passar pela multidão que queria ver o porra do prefeito (algumas, a porra), cansou dos “com licença, com licença”, e ignorou – como multidão – a placa: “não pise na grama”.

Foi caminhando pelo que um dia chamavam de jardim. Ninguém notou. Continuou. Foi até o outro lado da praça totalmente vazio. Uma velhinha passava mal com o calor, e sua neta tentava cuidar dela com seu jeitinho, bermuda rosa-choque, 16 anos no máximo. “Vó, vou deixar a senhora aqui descansando, e vou lá com o pessoal. Não some não, viu!”

“Amanhã o jornal dá mais uma nota de desaparecimento”, ele pensou. “Essa meninada nova, principalmente as garotinhas mais gostosinhas, não estão nem aí com nada, só querem saber de beijar.”

"Essas menininhas de hoje... Esse porra de prefeito que deixa a cidade descuidada... Porra de domingo... Porr...”, interrompido por uma flor, abandonada, sozinha no meio do jardim, parou brusco. Flor no meio da cidade esquecida, no meio da massa de um olho só. Flor singular no meio das meninas de bermudas rosa-choque, no meio dos domingos de sol aproveitados na praça pra enganar mais gente com discurso político. Uma flor. Há quanto tempo não via (ou não notava) uma flor que não fosse à venda nas floriculturas. Era uma flor que não conhecia, era bonita em sua solidão de flor, no domingo de sol, na praça da estúpida cidade.

S
e fosse articulista em vez de noticiarista, escreveria:

Sozinha e, graças a Deus, distante do palanque, uma flor no meio do jardim descuidado da praça central denunciava a morte de sua companheira de prosa: uma velha árvore de cedro, que sabia de todas as histórias da cidade, simplesmente havia sido trocada por uma placa de bronze com os dizeres ‘Administração Fulano de Tal’. Se pudesse chorar o néctar que as abelhas não mais desejam, engoliria o choro, por ódio à política”.

O prefeito, depois de repetir o discurso dos outros domingos, também não quis enfrentar a multidão e cortou caminho pelo jardim de uma única flor. “Lá vem ele e os puxa-sacos atrás”. Se fosse um de seus aspones o assassino, doeria menos – não, o próprio porra do prefeito nem viu a flor e pisou sorridente o único encanto do resto da praça num domingo de sol. “Filho da puta! Filho da puta!”. Ele parou na placa de bronze com os dizeres Administração Fulano de Tal, posando para as fotos com seu sorriso amarelo aos repórteres igualmente puxa-sacos.

Foi quando o chefe chamou pra ouvir o que dizia o prefeito. “Porra, como ele me descobriu aqui?!”. Foi decidido a falar qualquer besteira e ser despedido, não aguentava mais aquela palhaçada toda. Nem precisou.

Enquanto repórteres puxa-sacos se calavam, um jornalista sabe-se lá de onde perguntava alguma coisa sobre crime ecológico e superfaturamento na compra de placas de bronze. Desmoronou-se o domingo de sol, e não era mais por causa do calor o rosto enrubescido do prefeito, que gritava, xingava. Cuspia saliva na cara do jornalista. Por vingança só pela falta de educação, ele estampara no jornal toda a investigação, jornalismo de verdade, que desencadearia mais tarde num processo e na derrocada da carreira política do bosta do prefeito. Outra história.

No meio da balbúrdia no jardim da praça, ele então só encontrou caminho pelas passagens principais, antes ocupadas pelos munícipes, que até então acreditavam no porra do prefeito. Foi sem pressa. Há muito tempo não admirava detalhes na cidade. Viu a menina de bermuda rosa-choque recolhendo pelos braços a vó que passava mal com o calor, dizendo: “Vamos pra casa, vovó. Eu cuido da senhora e a gente volta outro dia só pra passear. Vamos...”

Percebeu: nem tudo era do jeito que fazia questão de ver. Se fosse articulista em vez de noticiarista, escreveria:

“Se a flor pudesse ressuscitar depois do pisão do chefe do Executivo, forçaria o caule para cima, no tipo ‘renascida do inferno’, só pra sorrir a doce vingança. Se pudesse chorar o néctar que as abelhas esqueceram um dia, choraria de felicidade e de saudades de sua amiga de prosa: a velha árvore de cedro, trocada pela placa de bronze superfaturada pela ‘Administração Fulano de Tal’. A flor estava morta, mas com sua morte renascera o ideal.”


Sentiu vontade de plantar uma flor e uma árvore. Comprou sementes, e no canteiro minúsculo da sua casa plantou, e compôs uma poesia – “há quanto tempo eu não escrevia uma poesia?...”

Ah, sim, qual flor: não sabia, não havia perguntado quando comprou a semente. “Não importa”. Mas a poesia, sabia muito bem - de cor, em seu coração de agora novo jardineiro.

CRiga.


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