sexta-feira, 6 de maio de 2016

Aluga-se uma Clarice

Ela tinha qualquer coisa de meiga, puta e marginal que precisa de ajuda, grana, carinho e uma história de amor proibido. Fumava feito chaminé louca, à sua varanda, minissaia, miniblusa, minialma. Às vezes a noite chegava, e ela, já sem cigarros ou bebidas, chorava a lágrima seca da dor simplificada, e pedia a mão de Deus sobre seus cabelos castanhos, mais um sono sobre o oceano cheio de surpresas. Acabara de ler um livro de Clarice Lispector, e sentia-se só, má, porra louca, pouca humana. Inferior.

Levantou-se da banqueta de plástico, andou sobre o jardim que um dia foi jardim, chegando à mureta que dividia seu quintal com o do vizinho. A música saía da sala da casa de três cômodos dele, à meia luz avermelhada, junto da fumaça do cigarro e do incenso, e tudo era uma visão mista de fim de mundo e excitante mistério, feito um filme inglês que contava a história de um escritor famoso, que fazia questão de se manter reservado, mas que era um puta psicótico alienado, um gênio, mas alienado e com problemas sexuais, se masturbava à janela vendo a vizinha lavar o quintal. Como seria excitante conhecer um vizinho psicótico, que me deitasse em seu jardim tão mal cuidado quanto o meu, e me violentasse das crises existenciais de puta aos trinta anos de idade, sem grana e esperança. Só dor. E vivência da dor, como companheira fidedigna que nunca me trairia feito a felicidade inventada de marido e mulher fazendo compras em supermercado, correndo atrás das ofertas do dia.

Determinada a pedir um cigarro ou uma transa, dependendo do papo, gritou um “oi” da mureta, como se empunhasse uma bandeira branca invisível e dissesse “vim em missão de paz”, querendo dizer “me dá um cigarro, vamos transar para quebrar o tédio”. A música: um rock inglês, paradão, denso, lindo, cheio de guitarras distorcidas, e uma voz que sussurrava... The Cure! Ninguém atendera ao “oi”. Porra, cadê o cara? É cara? Será que não é um velhão, ou uma mulher como eu, entediada, assexuada, perturbada?...

“Oi”, gritou mais uma vez. “Oiii...”. Já ia voltando à banqueta, quando um vulto apareceu à porta. Só dava pra ver a silhueta negra, cabelos longos, estatura alta, braços e ombros largos. Ai, meu Deus... o jardim, a terra nas minhas costas, o cheiro da terra, do sexo, do fumo, a música!... Aí vem ele!

Era ela. Óculos grossos, aro preto, no estilo diretor de cinema. Cabelos longos, loiros. Camiseta branca regata, calça larga do tipo camuflada, um cigarro entre os dedos. E uma tatuagem na parte frontal do ombro direito, mais um piercing no umbigo e outro no nariz. “Oi!”, ela respondeu. “Tudo bem?”

***

Porra, tinha que ser mulher? “Tudo bem! Olha, a gente é vizinha e nem se conhece, né?”, dizia, meio “me enganei, tenho que ser sociável como a sociedade pede, que merda!”. “Quer entrar?”, perguntou a loira. Entrar? Assim, de sopetão? Porra, quero sim, tou curiosa e a coisa está sendo totalmente diferente da que eu imaginava. Talvez melhor, talvez nada. Mas diferente, novo, acontecendo, me tirando da porra da crise existencial.

Dei a volta pela mureta, entrei. A casa cheirava a um maravilhoso incenso, a música estava numa altura legal, a luminária da sala era vermelha! Porra, louca demais. Disse-me a dona da casa que fazia tempo não recebia visitas, e que nem sabia como receber uma. “Me dá um cigarro, que tá tudo bem”. Ela deu, acendeu na minha boca. “Legal tua casa”.

“O que cê faz ali parada na varanda tanto tempo?”, perguntou, olhando-me fixamente dentro de mim, como que querendo me arrancar segredos quentes. “Nada. Só fico ali, esperando talvez o mundo acabar, talvez uma aventura, talvez uma chuva forte. Talvez a morte, ou, mais simples, um cigarro.”

“O cigarro você já tem. O que espera agora?”, disse a loira. “Uma cerveja?...”, perguntei. Logo vinha o balde de metal lindo, cheia de garrafinhas de cerveja importada. “Fica à vontade. Senta. Curte o som?”. Curtia. “O que você faz?”. Trabalhava numa porra de escritório durante oito horas diárias, ganhava o suficiente para viver sozinha pagando aluguel e alugando sonhos. Ela se aproximou no sofá. “O que espera agora agora?”, disse, sibilando, devagar, com a voz tão sussurrada como a de Bob Smith. “Alugar um sonho”, respondi.

Sua mão foi entre minhas pernas, entre minha minissaia. Foi como que oferecendo um sonho que não se aluga assim, de bobeira. E eu aceitava, dizia sim, sim, agora, agora. Aventura! Eu era a terra, ela a desbravadora. Levantei devagar, caminhei de costas até a porta. “Não... ali, no jardim... na terra...”

O jardim dela não era tão mal cuidado como o meu. Tinha rosas. Nua entre o cheiro das rosas e da terra úmida, aluguei um sonho até o sol ensaiar nascer. Ela dormia mulher rainha sobre a terra, e eu, toda marrom com o cheiro da mesma terra saí de roupas às mãos, pulando por cima da mureta. Entrei em minha casa, tomei um banho, e sai para a porra do escritório. No portão, dei de cara com um cara entrando na casa da vizinha. Era barbudo, careta, do tipo comunista que voltava bêbado sem nunca fazer porra de revolução nenhuma. Tinha cara de falso intelectual. Ouço: “O que você faz aí deitada pelada no jardim? Tá louca?”. “Não, transei aqui com a vizinha!”. “O quê? Com aquela esquisita?”

O “esquisita” não me chateou. Para falar a verdade, fiquei feliz de ser diferente, esquisita. Foda-se. Eu alugara um sonho e pagara quase nada. Ganhei um cigarro, uma cerveja, uma transa e uma aventura. E a morte?

Depois fiquei sabendo que a loira tinha se matado, e o cara barbudo tinha sido preso por corrupção de menores. A casa ficou vazia, e durante muitas noites, à varanda, aluguei na memória aquele sonho bom, libertário. Pulei de volta a mureta numa noite, e as rosas continuavam ali, belas, cheirosas. Tirei minha roupa e dormi entre elas. O que eu quero agora agora? Esperar talvez o mundo acabar, talvez uma aventura, talvez uma chuva forte. Talvez a morte, ou, mais simples, um cigarro.

Veio a chuva. E, depois, muito mais simples, minha pele queimando a cada gota grossa, e meus olhos chorando junto às rosas de onde escorriam orvalhos de amores imperfeitos. Os espinhos eram amigos, e o sangue entre minhas pernas, vermelho feitos as rosas, denunciava o corpo de mulher cansada.

Eu chorava a lágrima seca da dor simplificada, e pedia mais uma vez a mão de Deus – desta vez sobre todo meu corpo nu, quase enterrado junto às rosas, criações de arte de Sua autoria. E eu? Autoria de quem, pra quem, por quem? Eu pedia mais um sono profundo, mas agora sobre o jardim, cheio de incertezas e surpresas que jaziam mortas, sangrando junto ao meu ciclo de mulher criação de Deus.

***

Dormiu o sono de rainha morta, Inês de Castro, que ressuscitaria no dia da vingança. Ressuscitou, olhos e células rijas, decididas a vencer não-sei-o-quê. Mas vencer, nem que seja a custa de alugar-se meiga, puta e marginal que precisa de ajuda, grana, carinho e uma história de amor proibido.

No dia seguinte, comprou mais um livro de Clarice Lispector. Comprou um incenso e um disco do Cure. Restabelecida vírus sem anticorpo, postou-se à varanda, pronta para o resto. Pronta para alugar novos sonhos.

CRiga.


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