Marcos
não viria vê-la aquela noite. Iria beber com os amigos, em plena quarta-feira.
Ela ficou possessa da vida, “como, me deixar sozinha em casa numa noite chuvosa
como essa? Filho da puta! Filho da puta!”. Estava cansada, brigou com o chefe,
pegou ônibus lotado, quebrou, tomou chuva, só queria uma massagem. “Egoísta, os
homens são todos egoístas! Nós, mulheres, que sofremos! Por que tem de ser
assim?”
Desabou
no sofá macio, pegou o controle remoto sobre a mesa de centro, e ligou a tevê.
“Novela?... Que porre...” Mas resolveu encarar aquela trama idiota de novela
das sete, afinal, há quanto tempo não assistia a uma novela inofensiva?
Dois
minutos depois, xingava a personagem que acreditava na desculpa do galã, que,
pouco antes, beijava a melhor amiga dela. “Será que Marcos me trairia com minha
melhor amiga?” Lembrou que não tinha mais melhor amiga, pois, por cinco anos
namorando o Marcos, abdicara-se de algumas amizades, tudo em nome do amor.
“Como
é fácil para o homem se relacionar com outros... Tão simples...” Pensava
consigo, para eles, os homens, não precisam nem de muito laço de amizade pra
sair numa quarta-feira pra beber. Devem falar assuntos de trabalho – como
fulano é chato, ciclano pega no meu pé, seu relatório foi do caralho, você vai
ser promovido, como a secretária do chefe é gostosa e ainda deu bola pra mim.
“Ah, Marcos, você que ouse!”
Como
não queria ficar encasquetando minhocas na cabeça, resolveu prestar mais
atenção na novela pra esquecer. “Precisava mostrar os dois na cama nas cenas do
próximo capítulo? Justo hoje que estou sozinha?”. Desligou a TV e foi tomar um banho quente.
Como
Marcos dessa vez não estava ali, não esqueceu de levar a toalha. Sempre
enquanto ela tomava banho depois de chegar do trabalho, Marcos ficava estirado
na cama, conversando com ela, aos berros, de vez em quando, pois o barulho do
chuveiro era forte. Ela sempre esquecia, mas de propósito, a toalha em cima da
cama. “Amor, traz a toalha?” Este era o código para “Amor, vamos transar?”
Quando os dois discutiam, e ela ia puta da vida para o banho, fazia questão de
levar a toalha, como que quisesse já avisar: “Hoje, sem chance, seu canalha!” O
pior é que ele também não estava nem aí. “Não vai falar nada, não, seu Marcos?”
No final, era sempre ela quem tinha que procurá-lo. “Taurino é foda!”.
Secou-se
rápido, afinal não queria ter que correr ao telefone, molhando todo o carpete
do quarto. “Que besteira, Marcos nem deve ligar hoje...” Geralmente, depois do
banho, botava só uma camiseta larga e longa, ficava à vontade, ia ao microondas
com Marcos e preparava algo rápido para dois comerem juntos. Àquela noite
estava sem fome, e botara, além da camiseta, uma bermuda. “Vou botar uma
calça”, pois resolveu que também iria pela cidade, beber alguma coisa. “Com
quem? Porra, não tenho ninguém pra chamar. Mas o Marcos tem, filho da puta!”
Ficou
revoltada, de repente. “Canalha, sai pra beber com qualquer um, ou qualquer
uma, e me deixa sozinha sozinha... O que você me fez comigo, Marcos?! Quem você
pensa que é?”
Foi
à estante e sacou uma garrafa de vinho tinto e seco, que Marcos trouxera do
supermercado no domingo. Depois de ter travado uma batalha homérica com a rolha
(“como Marcos consegue abrir garrafas de vinho com tanta facilidade?”), pegou
uma taça (há quanto tempo não pegava apenas “uma” taça) e olhou o brilho do
cristal. “Foda-se, vou beber no gargalo mesmo”.
Bebeu
meia garrafa, sentada à beira da cama, ouvindo Janis Joplin (há quanto tempo
não ouvia Janis Joplin, só porque Marcos “odiava”). Já meio embriagada, uma
lágrima rolou pelo seu rosto (há quanto tempo não chorava sozinha?). “Marcos,
está tudo acabado entre nós!”
O
resto da garrafa de vinho resolveu beber sentada na calçada, em frente ao
apartamento. Começou a chover novamente, e ela continuava sentada na calçada,
bebendo no gargalo, chorando de vez em quando, e cantando a Janis Joplin, que
ela adorava, e Marcos odiava: “You know
that I need a man, but when I ask you to just tell me that may be you can...”*
Garrafa
de vinho seco totalmente seca. Ela, totalmente embriagada, sozinha, seca,
sentada na calçada. Junto com o vinho, o repertório também acabara, e tudo
parecia ter cessado, menos a chuva, que caía incessantemente. “Marcos não me
ama mais...”
Quando
Marcos despontou na esquina, com seu Uno verde, modelo “sei lá, não me lembro”,
ela chorou mais, soluçava, não sabia mais o que fazer. “O que você está fazendo
aqui nessa chuva, meu amor?” Era meia-noite. “Você não me ama mais, você não me
ama mais....”, ela dizia.
Ela
mal conseguia falar, e Marcos a tomou nos braços – braços nos quais tantas
vezes ela dormiu, braços fortes, abrigo, braços de homem, amigo, amante, braços
do eternamente. “Vamos para dentro, está chovendo, o que está acontecendo?”
Marcos nem teve a chance de deixar a garrafa vazia junto à lixeira, porque ela
escorregara pela mão dela e fez-se mil cacos numa calçada da Vila Mariana.
“Você não me ama mais...”, ela dizia.
Marcos
não a desabou no sofá, mas a deixou como jóia demais preciosa só precisando de
polimento. “Marcos, você não me ama mais?” Ele não entendia. “Vou fazer um café
pra você, meu amor...”
No
entanto, ela só queria saber. “Marcos, você não me ama mais?”. Ele respondeu:
“É claro que amo, meu amor... Por isso estou aqui...” Ela chorava como nunca
chorara em sua vida. “Marcos, Marcos...” Ele estava assustado. “Estou aqui, meu
amor, espere só um pouquinho, vou pegar um café...”
As
lágrimas dela, então, resolveram cessar. “Não quero café, meu amor... Só quero
a toalha... Amor, traz a toalha?...”
* “Move Over”, Janis
Joplin
CRiga.