terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cartão de ponto

Tinha um menino que todo dia esperava o pai chegar da fábrica, cinco da tarde, a fumaça cinza aos poucos dando lugar ao fim-de-tarde na vila operária. Ele trazia balas. O pai sempre trazia balas. E o menino gostava daquelas balinhas de botequim, mas gostava muito mais quando o pai aparecia na esquina, e o menino saía correndo pela calçada ao seu encontro, bracinhos e brações abertos. Aquele cheiro de tabaco, o macacão cinza da fábrica, as mãos quentes, grossas. Um passeio de mãos dadas de volta pra casa, contando o que se fizera naquele dia. Aquele jeitão, sorriso cansado - mas sorriso de ouro pro filho. E as balas, sempre balas.

Um dia o menino não esperaria mais, o pai já sabia. Um dia ele estava na esquina, conversando com uma menina sem mãe nem pai, morava de favor na casa de tios distantes. O pai foi levar balas, a menina aceitou, e o menino amarrou a cara com vergonha. Não faz mais isso! Eu nem gosto dessas balas de botequim! Não quero que ela te veja assim, com essa roupa de operário, sujo, cheirando a...! O pai entendeu que a espera agora era só questão de hormônios. Não mais trouxe balas.

Quando chegava todo dia, agora o pai parava no portão de casa. Olhava a mesma esquina, sacava seu cachimbo, olhava o filho e a menina sumindo, se perdendo. Só olhava, não falava. Ficava até o filho e a menina sumirem da vista, e a fumaça linda da fábrica dar lugar ao fim-de-tarde docemente melancólico.

A menina depois apareceu embuchada. A mãe entrou em pânico, acusou, xingou. Tão cedo, um filho! Como vão criar? A vida de vocês acabou.

O pai só espiava. O menino nada dizia. A mãe condenava os dois pelo silêncio. O pai saía à calçada, afundava o tabaco no cachimbo, e olhava a lua, operária, batendo cartão em seu turno.

Anos depois não se sabia o paradeiro do menino. Cansado daquela vila cinza e histórias demais iguais, fugiu com outra menina sem pais. A outra menina, a mãe, morreu no parto. O bebê ficou na casa dos avós paternos, muito bem criado.

Cresceu, menino bom. E às cinco da tarde, permanecera aquela mesma fumaça cinza aos poucos dando lugar ao fim-de-tarde na vila. E um menino que esperava no portão de casa, todos os dias, aquelas balinhas de botequim. “Vovô chegou! Vovô chegou!”.

Um dia vovô não chegaria mais, o menino já percebia. Pulmões prejudicados, aposentaria indigna, tardes no portão de casa olhando uma esquina, um nada. A vida também bate cartão. O menino tratou de crescer.

Tinha um velinho na cadeira velha que todo dia esperava alguém no portão de casa. E às cinco da tarde, a fumaça linda aos poucos dando lugar ao fim da vida. Ele via despontar na esquina um moço bom, de macacão cinza, sorridente, orgulhoso ganhando a vida à frente - e lembrava de alguém. O moço bom sempre trazia balas. A vó sempre maldizia, ele tem diabetes, ele tá doente, não pode comer doce. Mais dia menos dia não haveria mais vovô no portão esperando tanto às cinco da tarde, silencioso, de olho na esquina. O moço bem já sabia.

Tinha um velho que todo dia esperava o moço chegar da fábrica, cinco da tarde em ponto. Estender as mãos, e sorrir. Sorrisos cúmplices de ouro. Uma fumaça que insistia em ser bonita dando lugar ao fim-de-tarde, a lua batendo cartão em seu turno. Algo pode falhar na vida, menos os turnos de cada um. E as balas, sempre as balas!

CRiga.

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