Dá-me às vezes preguiça te procurar, falar contigo. De
arrancar-te os segredos, fazer-te despertar desse hipnotismo regado à seiva
ácida do cotidiano. Chacoalhar-te do sono irritante. Ferir-te com a faca cega.
Dá-me trabalho te procurar. Muito mais fácil quando
gritas geralmente numa manhã chuvosa, ou quando inventas de fixar o olhar num
encanto fora de seu alcance, melhor assim – sangras de uma vez as letras
contidas nos cabelos, nas cores da pele, entre as pernas, no jeito de ser.
Dá-me prazer abrir-me contigo. Tuas respostas nem
sempre convenientes me pregam na doce cruz de um sofrer quieto, nas linhas do
diário. Tu és por vezes uma romancista, outras uma irrequieta observadora,
outras amante. És perfeita em tua imperfeição de psique duvidosa, este monstro
que perturba a verdade dos contos de fadas sejam eles do jeito que for –
psicóticos, eróticos, sociais, banais.
Embriago-me só de abrir a rolha do teu nobre vinho,
me toma o corpo a forte fragrância do vidrinho do teu perfume quando o cristal
se estilhaça na minha busca pelo sentido de viver. Mas às vezes o cheiro vem do
campo, outras do pescoço de uma mulher, várias outras do asfalto molhado pela
chuva. O gosto? Ácido sulfúrico, o vinho francês que nunca tomei, a maçã do
pecado que não acredito mais. Texturas de veludo, sempre.
Enlouqueces-me quando não me respondes – daí cometo
o ato derradeiro de te amaldiçoar em todas as noites e dias simplesmente
parados num quadro sempre igual, mas com cores variadas; falo mal de você nos cais,
boto uma rima do dicionário pra convencer a história, e me acho o tal quando
tenho a certeza que matei você de vez, não mereces minha devoção...
Mas és imortal! Deliro quando vens então
semicadáver, arrastando vísceras e ainda carregando um caderno azul! Tomas a
adaga da minha mão, e me cravas no peito correções escritas com meu sangue.
Nosso sangue. E revives, me matas de pulsos pulsantes, quase um infarto de
letras que saltam. És traiçoeira quando te acho, e tu me entortas feito
Garrincha – seguir-te, então, assistir ao gol e vibrar com a arquibancada
completamente vazia de nossa simples imaginação.
Pronto! Já não há mais palavras. Então sorris o
sorriso da marotice, borboleta de primavera, cânticos de águas cristalinas na
corredeira. Uma varanda de missão cumprida, duas cadeiras de balanço, crianças
crescendo no quintal.
És finalmente alguém em que se pode confiar. Ou
nunca confiar. És finalmente alma. Finalmente poesia.
CRiga.