A garota àquela hora já estava cansada de andar entre as ruas do
Centro, de lá para cá, olhando vitrines desinteressantes e o chão. Aquele
conjunto de ladrilhos que formava o mapa do Estado de São Paulo, em linhas
retas, velho e azul como o metrô na Estação da Luz, bêbados, cheiro de mijo nas
esquinas, cadê as lojas de discos que eu li a respeito?
Com seu coturno preto até o joelho, brinquinhos, cabelo preto
preto até a nuca com tatuagem - de henna -, uma caveirinha, esqueletinho
inteiro, bonitinha até. Logo acima do decotinho, sobre um dos seios que
despontava durinho, outra tatuagem de henna, um beija-flor. Liberdade eu quero.
Uma saia xadrez grande, cara como tudo que possuía. O menos caro que tinha era
a idade: 16.
Não tinha amigos mais, decidira. Todos eles eram burguesinhos
demais, raves, ecstasy, Dysney Word, carros importados, mendigos incendiados,
prostitutas agredidas. Ela então resolveu um dia torrar a mesadona em roupas
daquelas que as amigas não usavam. Tudo de grife, ficou uma “punk chic”, e
pensava ser diferente.
Não chamou o motorista pra ir ao Centro, foi só, um táxi. Disseram
um dia pra ela que aquele era um lugar “cool”, da moda, onde tribos urbanas se
reconheciam. Como não tinha ninguém pra acompanhar, foi sozinha mesmo. Cansou de
caminhar, sentou no chão, tipo rebelde. Cabeça baixa, sem absolutamente nada de
criativo na cabeça. Era magrinha, bonita, olhos pintados a lápis preto, batom
preto, um olhar de pureza de novela das oito e aquelas famílias com sotaque
carioca, da Tijuca.
Surpreendida aos chutes, viu moleques descalços tentando roubar
sua mochila. Gritou mamãe, papai, não havia ninguém, apenas a multidão que
passava acostumada às cenas de moleques roubando esses drogados do centro da
cidade. Ninguém fazia nada. Era normal, deixa a vida seguir assim. Os moleques
aos xingos, sua puta, vaca, passa logo essa merda. Um deles deixou cair o
cachimbo de crack. Foram embora andando, dando risada, gestos obscenos.
A bolsa se foi, ela caída no ladrilho da realidade do centro de São
Paulo. Isso não era cool. Levantou cambaleante, chorando, sangrando no canto da
boca. Não tinha grana nem para pegar metrô e ônibus de volta, nem sabia voltar.
O celular com câmera fotográfica foi junto com a bolsa. Sentou de novo
chorando, agarrou o cachimbo de crack, nem sabia do que se tratava.
“Olha aquela menina, tão novinha se drogando”, ouviu. Quando
virou-se, duas freiras comentando. “Me ajuda, não sou drogada, não sou”. “Sai,
sai!..”, as freiras se livrando das mãos dela.
Parou olhando o nada, assustada. Não sabia nem ligar a cobrar de
um orelhão. Queria mesmo era saber voar pra fugir dali. Como quis poder voar,
agressiva contra o céu, contra o mundo, contra todos.
“Ta perdida, filha?”. Era um homem dos seus 40 anos, camisa manga
curta, gravata, óculos de aros pretos, tipo corretor da bolsa de valores. “Tou
sim, me ajuda”, contou toda a história. Ele pagou um refrigerante para acalmar.
“Venha, vou levar você pra casa”.
No carro, desviou caminho. Rua erma. Olhar de brasa, quase babava,
foi com todos os braços e pernas pra cima dela, abrindo a braguilha. Gritos
dela abafados por um tapa, ela desmaiou. Escuro total.
Acordou num hospital, hematoma, muita dor. Havia sido jogada numa
calçada, um gari a encontrou caída e desacordada. Pela tevê já haviam
identificado a garota, fugiu de casa, revoltada com o mundo cor-de-rosa. “Seus
pais estão a caminho, fique calma agora”, uma voz de enfermeira.
Não ficou. Chorou, chorou desesperadamente. Gritava não por causa
da dor no corpo inteiro, rosto, braços, pernas, entre as pernas. Era uma dose
tão cavalar de realidade que a dor doía em sua alma. Antes cabeça vazia, agora
cheia de terror. Soluçava. Minutos depois foi baixando o tom, baixando aos
poucos, fechando os olhos. Tentou buscar algo pra continuar, não encontrou.
Papai e mamãe chegaram. Férias da escola, roupa nova, tratamento
rápido, uma viagem pra Europa. Um lago em Paris, a cidade das luzes, sobre uma
bela ponte, alta. Melhor lugar não havia.
Cabeça vazia que a cidade das luzes não iluminou. No escuro, na
marginal lá embaixo, a mesma saia xadrez manchada, no bolso um cachimbo
guardado, usado há pouco. Agora nua, branquinha, pêlos pubianos ainda ralinhos
e seios pequenos, biquinhos. De pé sobre o peitoril da ponte, braços abertos no
frio europeu, mais imagens confusas de moleques descalços gargalhando, um carro
abafado, um corpo de homem mais velho sobre ela de lá pra cá. Um hospital. E
mamãe e papai pagando viagem, se livrando do problema, sequer perguntaram
porque estava ela tão longe de casa àquele dia confuso no Centro. Um beijinho
frio no aeroporto, se cuida, aproveita, tem dinheiro na sua conta pra fazer o
que você quiser.
E, pela primeira vez, quis de fato alguma coisa. Nada contra o
mundo, nada contra ninguém. Ali, naquela ponte, em Paris, nua sobre o peitoril,
melhor lugar não havia. Só queria aprender a voar.
CRiga.
(Vencedor do Prêmio Barueri de Literatura)
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