(Quando li “Morangos
Mofados”, do Caio F., pela primeira vez, uma energia louca tomou conta do meu
pulso. E quase como um plágio à sua belíssima forma amargurada de descrever
sentimentos, cometi esta “Balada” – totalmente em homenagem a “Morangos”,
totalmente em adoração a Caio Fernando Abreu. Hoje, 20 anos sem ele.)
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXzt_AhOs09JIqGiRJVVD-R13isO2PRv_-f0vxvcIzwmhc1LM883nEtHfa5Rffrl_Y7-KxBMe0Rca9M_XUHmgo36lV-6WtnDSb-zimAVo3myrwszdtc1kBavDNH0w6VSeMIshCmz1TwPb9/s320/caio.jpg)
Naquela
luta, eu era mais eu. Conjeturava planos infalíveis, “organizava movimentos,
orientava carnavais”. Caminhava na nublada metrópole mãos dadas colegas minhas,
amantes minhas. Egoísta, só devotava amor à luta. Pelos canteiros me enroscava
com as pernas das moças, cada beijo um morango diferente, sempre azedo, sempre
morango. Aquilo era quase tudo junto daquela luta infinita e companheira, dias
estranhos em que eu caminhava pelas avenidas cinzas dos anos setenta, como que
caminhasse lisérgico zumbi, cantando protestos Vandré Buarque e algo mais.
Detestava um tal de Belchior que só reclamava da vida e tinha aquele instinto
de quem num dia cansou de lutar. Eu não admitia, “porra, o cara é artista”, não
podia assim cantar a desistência, tinha de levantar bandeiras, incendiar as
cabeças pensantes. Alguma coisa naquele moço parecia com falso ar de
conhecimento de causa: eu não entendia aquela atitude, porque para mim valia a
luta, a guerra, a passeata. Valiam as festas todas em que os olhos embaçavam no
ácido, coroavam dionísios e neros, convidavam Che Guevara para um tango à
Gardel, bêbado no canto da sala exoticamente decorada, que parecia às vezes
ruir numa privada velha e suja no centro da cidade, cuja população benevolente
era somente de bêbados, marginais, putas e filhos das putas. E eu: saía
amarrado em braços que não eram meus, me enroscava em corpos quentes nas noites
de verão, dentro do apartamento com porta rosa-choque e cheio de pôsteres
enormes e coloridos. A vitrola gritava Beatles, Dylan, Janis, Jimi, Chico
Vandré e outros mais, aquele sonzinho, “discoteca”, pra variar, aquele tal de
Belchior, pra duvidar, e mais gritos despertados da cama redonda com ar de
inverno polonês.
Era uma
sexta-feira, como a da semana que passara despercebida. O sábado também passou
rápido demais numa carreira de pó, oceanos de álcool, túneis coloridos, sonhos
psicodélicos e em câmera lenta, vez em quando preto no branco, vez em quando
discurso político, vezes outras, muitas outras, um adentrar profundo sem
perguntar nomes e emoções nos corpos dilacerados pelos anos setenta. Pernas
abertas sem fronteiras, caminhos tortuosos feito a direita radical daquela
época barbitúrica. Aliás, os anos setenta dilaceraram muitos corpos, muitos,
que cada orgasmo violento e ardente era como um grito último do porão, antes de
o corpo despencar e morrer pelo prazer de não sentir mais dor: inverso do sexo,
quando se morria pelo prazer só pra se esquecer da dor dos abandonos. Os anos
setenta compuseram hinos, assassinaram poetas e operários do Brasil teatro,
coroaram reis e inverdades postas em outdoor e cartilha escolar.
Aquele
sábado passou rápido, rápido demais, como o ano passado igual a este: não
deixou rastro nem saudade, não plantou novas flores nem acendeu uma vela nas
noites eternas. O sábado acabou, escureceu. Não sei se dormi ou se morri e
nasci de novo...
...pois o
domingo amanheceu violento. Eu não entendia aquele despertar atônito, um sol
vermelho que cegava os olhos vermelhos. Parecia não existir mais tempo, alguma
coisa como o cansaço viera sacudir a alma entrevada, e houve compenetrante
silêncio: nada do que se incluíra naquela mesma velha luta viera ofuscante e
vermelha naquela luz de um sol singular. Parecia uma canção nunca antes
cantada, um sonho nunca antes sonhado, uma maneira de existir mais plena, a
saída de um lugar estranho que na verdade nunca estivemos. E não era ressaca
nem ressentimento: era aquela famosa lucidez incomunicável, que somente se tem
num estalo atômico dentro da cabeça decepada, ante o sol vermelho de um domingo
semigual. O mesmo sol de ontem, veja, o sol que descobrimos hoje, assim, eterno
feito ele só, e veja, tudo permaneceu, nada mudou no Brasil nem na direita. De
nós se perdeu aquela parte irrecuperável de nossas vidas, abandonada nos fundos
dos copos vazios e trincados. Nem mesmo aquela luta vale agora, aquela guerra,
protestos, aberrações. Nada valem os maços de cigarro, os discursos combinados,
tudo ficou para trás, meu amor: e você é o meu amor, o mesmo de ontem, amor que
deixei chorando por mim numa esquina, com um filho meu ao ventre descoberto, à
lua embriagada.
Vimos na
TV, mataram John Lennon, e não pudemos fazer parar a bala. Não mudamos nada e
ele se foi. John, eu tentei, não sei se tarde, mas eu quis salvar você, tentei demais,
todavia a bala atravessou minha mão e alcançou teu peito descoberto,
desprotegido feito o ventre do meu amor. E eu chorei...
Mas, veja,
veja meu filho que vai nascer, o meu filho... Talvez um dia ele ouça “Imagine”
e “Instant Karman”. Ele veio abrir meus olhos tortos, que perceberam pelo
caminho tortuoso até teu peito, John, muitas mãos sangrando, sofrendo, mas que
precisavam cicatrizar. Nada é para sempre, John, nem o silêncio...
...quando a
vitrola gritou: “a felicidade é uma arma quente”. Eu não entendia o que era,
realmente, ser feliz!... Sabia o que era uma arma, sabia usá-la bem na luta,
mas nunca tinha sido feliz. A luta cegou todos nós...
...quando a
vitrola insistiu: “ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais”. Eu era
um sonhador, um vírus no copo errado, e resolvi acreditar que o sonho tinha
mesmo acabado, de fato. Foi quando o tal do Belchior fez sentido, e eu o inclui
na lista dos meus preferidos, até que enfim!
Tenho hoje
guardado os Chicos Vandrés e outros mais, mas veja o que faz um simples sol
nascente de verão, e um ídolo que morre em nossas vidas: aquela luz vermelha
poliu os caminhos antes carreiras de pó e oceanos de álcool, plantando novos
morangos, agora doces, na nova década, bem tarde, para uma nova vida, novas
colheitas, novos ídolos, novos os caminhos.
Eu cansei
da guerra, da luta, agora eram os ares da nova década, sem Lennon e lutas
intensas, sem cores ou flores exóticas. Eu cansei dos caminhos cobertos por
carreiras de pó e oceanos de álcool. Agora um novo sol, um novo domingo:
agora uma
moça e eu, um beijo de morango vermelho. Agora meu filho que vinha me ensinar,
vinha nascer naquele novo canteiro. Agora um ventre coberto, bem perto de mim.
Agora eu era eu, mais do que nunca fui!
CRiga