sexta-feira, 20 de dezembro de 2024


 

Letras raras

 


Tenho vergonha de expor tristezas
Recônditos incompreensíveis.
Ninguém compra a flor que começa a murchar
Deixando um perfume de morte no ar.

Ou a maçã com aparência da pele idosa
Mas ainda saborosa dependendo do desejo
Dos dentes e da língua.

Há na garrafa empoeirada do boteco do Centro
Impregnada a história de um dia
Quando o alcoólatra era um cara legal.

Há na foto desbotada colada no relicário
Aquele mais doce segredo que o viúvo já esqueceu.

O casaco que arranha a pele no brechó
Já aqueceu um poeta e seu conhaque.

O vinagre já foi vinho
E a cruz a redenção –
Mas o padre desistiu.

Hoje não tem missa porque o Coral do Corpo de Cristo
Se vendeu ao Rock Inglês.
E a multidão no estádio grita a feliz unanimidade
De um ingresso muito caro.

Raro é o pulso magoado
Escrever um dia melhor.

CRiga.




sexta-feira, 29 de novembro de 2024


 

Toada de um amor vagabundo

 


Desmazelo, vovó diria
Até o dia
Que eu pedisse desculpas a Glorinha.

Amor cachorro…

Depois diria essa menininha é ouro.
E eu dando no couro
Mas evitando bisnetos dela –
No meu tempo santa é a camisinha.

Bandido!

Depois brigaria de novo.
Glorinha que era minha deu pra outro!
E vovó não sabendo de nada
Disse o que parecia tudo:

Glorinha dá pra quem quer
E você que não a trate bem
Que vai virar piada também
Na cama de quem a comeu.

Peguei um trem.

Então matei Glorinha
E na volta chupando sorvete
Apontei a mesma arma para vovó:

Mate que sou mesmo velha...
Pelo menos no inferno onde vou
Ouvirei com gosto feito mãe ausente
Glorinha falando que amava você
Que doce diabinha!

Que graça que a vida tinha?

Vovó só morreu de velhice
E nem pito me trouxe na cadeia
Antes de a corda amarrada no teto
Dar cabo de minha vida
Naquela cela fria.

Glorinha?
Virou santa e ganhou devotos
Com pôsteres de borracharia.

𝐂𝐑𝐢𝐠𝐚.



terça-feira, 26 de novembro de 2024


 

Fronteira

 


O trem no subúrbio passa implacável
Como um monstro de aço.
Estremece feito terremoto
As casinhas de papel.
Sacode os frágeis tapumes
Em forma de abrigos
Da favela fantasma.

Mas a arquitetura improvisada
Arte eternamente sem dinheiro
Não cai.
Imponente (do seu jeito) joga nas caras
A sofrida sobrevivência.

Porque a pobreza é assim:
Enquanto não descarrila o trem
Pra dentro da favela fantasma,

Tudo é
Cotidianamente
Apenas transparente.

CRiga.




terça-feira, 12 de novembro de 2024


 

Domingo de despedida

 


Chegaste sexta-feira um vendaval que eu senti
Depois a brisa do sábado que beija o rosto
Me salvando da cabeça panela de pressão.

Amanhã tem dia de manhã de sol
Uma segunda-feira de primeiras intenções.

Aqui só me resta as planilhas de guardanapo
Trezentos quilômetros de poesia.

CRiga.




sexta-feira, 8 de novembro de 2024


 


Na esquina da minha vida

 


Garimpo sorrisos sobre a rocha lisa do desencanto
Porque meu coração de pedra só aprendeu a ser só.

Ensino o nó do marinheiro mais antigo do cais
E no mais
Sou o som da gaita solitária ao pôr do sol.

Nas esquinas assovio um samba esquecido.
Mas a fogueira densa no tambor do frio do inverno
Também me lembra um velho e triste blues.

O cheiro do asfalto molhado.
O som do pneu contra a chuva.

Eu sempre amei
Como o último amante noturno da cidade que dorme.
Havia luzes refletindo um neon de esperança etílica
Uma avenida cheia de carros que nunca me levariam
A lugar algum.

Era o fim da avenida da minha vida
E eu quebrei a última esquina.

Foi quando ali havia você de batom vermelho
Me sorrindo, me esperando
Abrindo caminhos, memórias e sensações.

Uma alameda de flores e primaveras
E uma perfeita chuva fina
De eternos amores imperfeitos.

CRiga.



terça-feira, 29 de outubro de 2024


 

Drummondear

 


Tudo é um poema
Um sal diferente
Ou açúcar de gente.

Um canto desencanto
Bonito que dói.

Ou sutileza da beleza
Quão incomunicável que arde o pulso
Na busca da mais perfeita tradução.

Punhal invisível atirado à multidão
Contra a alma sempre aberta.

E quem não acerta desconhece
A graça que a poesia tem.

CRiga.


 


sábado, 26 de outubro de 2024

terça-feira, 22 de outubro de 2024

quinta-feira, 10 de outubro de 2024


 

Cafajestes

 


Eu me vejo manchando o teu vestido de casamento com o vermelho sangue de meu ciúme doentio – calma, sem páginas policiais: apenas a taça do vinho que a gente não tomou porque você estava tão atrasada pro fatídico dia da noiva, eu te dei carona e nem cobrei a gasosa. Então vai meu bem ficar tão lindamente atrasada pra gente brincar de rasgar vestido no ato consumado da festa da tua felicidade muito bem disfarçada pela pesada maquiagem cara, champanhe e padrinhos que gastaram uma graninha besta em presentes pra te ver feliz nas fotos do futuro álbum. Nem aquela cena ridícula de novela das oito existe mais nas igrejas pra eu te condenar, aquela que o padre pergunta se há alguém que tenha algo a dizer contra esse casamento que fale agora ou cale-se para sempre – diria mataram o mensageiro do amor com um tiro certeiro no peito, e, menos poético, teu noivo comeu tua prima por trás na tua cama ainda quente de manhã enquanto você tomava banho, tua família é uma farsa de corruptos e gente de passados duvidosos, você é a única que presta um pouquinho pra uma traiçãozinha nada demais antes do casamento... Mesmo na Santa Igreja não saberia mentir tanto. Casamentinho de merda! Me devolve então a grana Maria gasolina, Maria mãe de um deus que não acredito, Maria vai-com-as-outras-foi-comigo, ah, Maria! Eu te amaria tanto se você não dissesse sim, carregaríamos garrafas pelas ruas e cairíamos esquinas pelas noites sem fim até que alcançássemos a cama mais uma noite, a gente gritando urros de prazer na madrugada até o amanhecer te chamar praquele empreguinho de merda e o meu eterno vagabundear fingindo trabalhar numa redação de jornal. E só te trairia com escritos mais românticos, não marginais. E você se ofenderia. E por vingança finalmente se casaria, certa de querer ser eternamente infeliz.

CRiga.




terça-feira, 8 de outubro de 2024


 

Não deixe aquela ideia de poesia fugir!

 


Está ali, ao lado do sofá
Que a gente já não curte mais.

Cerca, entrou no vaso vazio
Preciso comprar uma flor.

Mata, correu pra trás da cama
Não durmo nunca mais com você!

Está no quarto das crianças
Brinca, elas vão correr atrás de você também.

Não deixa passar pela sala sem perceber
Fiz meu cabelo só pra você ver.

Não joga fora assim
Você pode me machucar.

Queima então
Mas dois peguinhas só.

Desarma a ratoeira
Não precisa mais depois de tanto tempo,

Faz tanto tempo que te amo!

CRiga.



quinta-feira, 3 de outubro de 2024


 

Pau oco

 


No meio da praça penitência
Na silenciosa romaria
À escadaria da catedral.

Não me bata a carteira
Não me roube a certeza
Que o meu tempo já passou.

Na via crucis ainda há uma oração
Que precisa seguir cega, sem rancor.

Tire sua graça do meu caminho
Que eu quero passar, muito devagar
Quero te comer com os olhos
Aqui do alto do meu andor.

𝐂𝐑𝐢𝐠𝐚.




domingo, 29 de setembro de 2024


 

Ponto de desencontro

 


Só te chamei pra perguntar se é só eu quem sofre essa dor de desencontro. Se é sou eu quem sente esses sinais do tempo, nos sonhos, quando a gente se encontra e acorda triste, feito coração partido pela metade. Se só sou eu quem se sente boiando num céu azul de missões, feito enfeite pendurado no teto, de lá pra cá, à mercê dos ventos que entram pelas nossas janelas abertas. Por favor, fique e me diga que não sou eu apenas quem espera um dia, nesta vida ou não, estar ao lado da alma dos tempos imemoriais.

Sim, isto tudo parece loucura, é muito mais poesia romântica que sensatez, tudo bem: não precisa se sentir negligenciada por atender ao chamado de alguém que você não via há tempos, alguém que não consegue deixar-te apenas sobrevivente. Não me olhe assim, com esse rosto de quem quer condenar Nero à própria fogueira, e fugir deixando para trás as cinzas que também são suas. Eu sei que você se disfarça como eu, à espera, à espreita, de longe, não quero nem te desviar de qualquer caminho que te faça segura sobrevivente, apenas quero uma resposta que nos conforte por ora, o resto de nossas missões.

Eu só quero saber se você também sente um coração nublado de vez em quando, quando você acorda, uma vontade de uma lágrima apenas, no canto do rosto gelado, pra lamentar essa ausência de você mesmo. Só quero saber se você também carrega consigo estas mesmas saudades do que nunca foi, mas com rostos e almas tornadas penduricalhos brilhantes naquele teto azul de Deus sozinho lá em cima, brincando de missões.

Se você não quiser responder, tudo bem... Vamos voltar à vida de sobreviventes, com sorrisos e afetos fáceis e outros sinceros também, de luta intensa no silêncio descomunal e confortante de deuses solitários, perambulando por aí de jeans, tênis e óculos de aros pretos, procurando sentido nas fáceis multidões. Vamos voltar aos nossos tetos reais sem penduricalhos, sonos pesados de cansaço, sonhos de veludo, manhãs de cheiro de asfalto molhado e luzes amarelas refletidas no chão, dando o tom de desencanto pelo resto do dia. Pelo resto da vida.

Vamos enfim lamentar este encontro, ou apenas beber ao reencontro cômico regado a fantasias sinceras. E vamos rir disso tudo então, dizer como seria se você tivesse voltado a passar naquela minha rua, como seria se eu tivesse dado a resposta sincera, não aquela defensivinha de garoto bobo. Comemorar como a vida é louca, esse vaivém de gente que nos invade e que parte sem dizer adeus.

A gente pode então rir alto feito gente feliz, e não precisamos nem mais tocar nesse assunto tão amargo e perigoso. Forçando a hora de ir embora, vamos olhar nos relógios procurando muros, trincheiras e saídas de emergência nos ponteiros. Vamos fugir dessa situação embaraçosa e caótica de falar sobre coisas e tempos que precisam ser descoisadas e arrancadas do DNA das horas. Vamos fingir olhares apressados mas saudosos, firmes na despedida. Vamos nos despedir apenas com um tchau, foi legal, enfim...

Ou vamos talhar com o punhal seco dos tempos a ferida, olhares molhados, bocas trêmulas e mãos dadas sobre a mesa do bar vazio. Vamos escancarar essa doideira de sentir saudades do que nunca foi, mas deveria ter sido não fossem os ventos na janela sempre aberta de Deus. Vamos amaldiçoar os desencontros, e admitir que não estamos mais prontos pra reconstruir passados que não passaram. Vamos apenas pôr na mesa essa intensidade de nos sentir almas tão ligadas no tempo, que se encontram de quando em vez nos sonhos, em outra dimensão. Vamos fazer um pacto sem prazos nem condições – apenas de confiança nos planos de Deus e seus penduricalhos brilhantes que só precisam de polimento. Vamos chorar de verdade. Vamos chorar a verdade. Vamos esquecer da verdade.

E vamos embora, enfim, apenas demarcando território: eu sou seu, você é minha, e ponto final, os desencontros a gente resolve depois das missões. Um brinde, meu amor, um brinde aos nossos desencontros necessários à sobrevivência da poesia, e dos doces barulhinhos que fazem os penduricalhos do teto de Deus, quando bate um vento de saudades e eles se esbarram no Seu céu azulzinho de missões.

Adeus, meu amor, até mais, até o próximo vento de janelas abertas. Até o teto azul finalmente nos soltar, e cairmos ex-penduricalhos, mas de pé, sem mais necessidade de polimento e de desencontros. Apenas nós, um encontro marcado, sem segredos, e uma casa com penduricalhos de anjinhos à porta. E aquele doce barulhinho à leve brisa, na varanda, aos finais das tardes que finalmente serão nossas.

CRiga.




sábado, 28 de setembro de 2024


 

Documentário

 


O que é lixo pra tua lente
É leão que mato na tua frente.
Este é apenas mais um dia
Dos meus apenas dias.

Só que eu mato um leão, mermão
Mas não mato a fome não...
Remexo lixo, só machuco a fome
Olha os home!

Corre logo ou vai preso
Come logo ou vai morrer mais cedo
Mais esperto, muito perto
Daquela lente da premiada indiferença
E do leite a salvo feito sentença
Ao lado da porta sempre fechada.

Captou a melhor imagem?
Que bom, posso seguir sossegado
Roubando o tíquete premiado
Da movimentada première.

Daí não chora não, mermão
É só leite derramado na sessão.

CRiga.



terça-feira, 17 de setembro de 2024


 

Um blues de madrugada

 


Te quero versos roubados
Feito poeta queimado na santa inquisição.

Te quero fogo armado até os dentes
E você de flor branca da paz na orelha
Rosa tatuada no ombro em que chorei.

És minha haitiana prometida
Proibida aos brancos.
Sou caçador bendito, barba ruiva
Vindo de caravelas me amaldiçoar de ti.

Te quero porta arrombada
Incenso e Because na vitrola.
Tua saia chita tonta e vermelha
Me perdendo nos faróis.

Te quero vício incurável
Ferido no vinho tinto
O seco na boca amarga
Minha história recontada
Num blues de madrugada.

CRiga.




segunda-feira, 9 de setembro de 2024


 

Polyvox

 


Há uma voz em nós
Que às vezes é urro
Outras é sussurro
Que grita, incita

E também canta
É santa no Padre Nosso Ave Maria
Brisa que sopra na calmaria
Trovão que amaldiçoa na tempestade.

Uma voz que acalma
Que excita ao ouvido
Que se lê nos gestos
Que se engole, sapos.

É rouca no inverno severo
Pouca na tristeza que consome.

Suave no drops de cereja
Arrepia na surpresa da paixão
Assusta quando é não
Apaixona de novo no tudo bem.

Uma só voz, uma voz só
Um coro de gente que protesta
Um coral que anima a festa
Que acompanha a procissão.

Uma voz que diz o caminho
A voz que fala com o coração.

 CRiga.