segunda-feira, 27 de maio de 2024

O lustre

 


Às vezes a vida insiste
No tear selvagem da amiga aranha.

Antes de limpar a casa
Bote memória no milagre artesanal
Aquela história da vovó.

Dedicado à vovozinha Aparecida

CRiga.



 

Recado a quem me odeia

 


Até para odiar alguém
É preciso de educação, classe
Inteligência e maturidade.

CRiga.


Desesperança

 


Uma cicatriz que sangra
A cada gracejo fútil da menina maquiada
Na academia amarrada inútil à câmera de um celular.

Playboys bombados e seus carros tão caros de luxo, são lixo.
Continuam a matar nas avenidas
Apenas formigas em seus quintais.

A gente quer inventar uma palavra de elogio
Pras lindas putas novas dos mesmos cais de sempre.
Longes dos caos, do que não serve
Do que que não entra na conta
No faz de conta
Nem na ponta do batom compartilhado.

Tanta coisa que nos vence pelo cansaço
Que a voz é só um compasso rouco na madrugada quente
Doente
Quando a gente desiste de gritar.

CRiga. 




Um filme de Almodóvar

 


Uma taça do vinho mais caro.
Quão caro então é o teu amor?

São verdades postas sobre a mesa
Numa novela brega de adolescência
Ou no baralho da cigana aposentada?

Urgência a esta altura é arquitetar histórias
De uma juventude junta que nunca foi.

Foi apenas um pão de cachorro-quente
Recheado de mel numa ilha do Paraná.

Quiçá um dia a lembrança seja de novo boa.
Quiçá numa nova noite
A gente possa de novo se entregar.

CRiga.





 

Qualquer desatenção

 


Estás a me perder aos poucos.
Tuas mãos distraídas deixam-me escorrer
Na praia areia de ampulheta –
Teu tempo está se acabando.

Mas eu
Volto pro mar como quem se deixa levar
Pela onda mais tranquila.

Depois não adianta mais nadar –
Vais te afogar e eu serei apenas
A maré devolvendo o ritmo à vida
Simples, inteira e natural.

CRiga.




quinta-feira, 23 de maio de 2024


 

Chave mestra

 


Dê duas voltas na chave,
Assim dá tempo
De pensar mais uma vez.

No que dizer, que sorriso dar,
Porque felicidade é sempre
A gente se encontrar.

Felicidade não mente,
É doente só de resfriado.
Saúde, meu bem,
Há um gole ainda do vinho francês
E uma nova versão de Ne Me Quitte Pas.

Abra a porta, o sorriso,
Só não denuncie logo de cara
O que de cara você quer dizer.

Tranque a tramela se mais romântico for.
Trame com ela um pecado pra mais tarde
E depois goze
Com a cara do Senhor Chaveiro.

Pra que tanta chave de buscar felicidade?

CRiga.




quarta-feira, 22 de maio de 2024


 

Alma do Tempo

 


João pergunta a Maria:
“O que temos para comer?...”
Maria, seca no olhar, responde:
“Nada, não, João...”

Eis que os olhares encontram
O brilho da colher polida,
Presente de casamento
De um amigo que morreu solteiro,
Sem pai nem mãe,
Sem ninguém pra dividir a dor.

E eis que fala Maria a João:
“Te amo, mesmo assim...”
E João, molhado o olhar, responde:
“Te amo também, para sempre!...”

CRiga.



segunda-feira, 20 de maio de 2024


 

Ar rarefeito

 


Não espero nada.

Um canto de passarinho
Um silêncio confortante.

O lugar que mais amo
A lembrança mais singela.
O perdão de fato
Teu tato no meio na madrugada densa.

A festa.
Uma fresta no muro severo
Deixando a brisa consolar o rosto.
Um gosto, qualquer gosto
Um jeito de você me sentir de novo.
Um escrito maldito que preste
Que peste de mil vidas espero!

Um sol que me silencie
Uma noite que me denuncie
Um querer viver consciente
De que tudo vai passar
Não vai, nunca vai…

Vejo carros passando em frente ao bar
Estou sozinho
Sei que ninguém vai chegar.

O mundo inteiro poderia parar
Ar rarefeito
Eu tento não esperar.

CRiga.



sexta-feira, 17 de maio de 2024


 

Nem sempre é o fim

 


Medo que nada,
Passa.

Tem gente que encara.
Tem gente que morre.

Tem gente que nada de braçada.
Tem gente que precisa de boia,
Salva-vidas ou de nada.

Tem cavalo que passa.
Tem cavalo que atropela.

Ninguém vai te dar o que você quer,
Nem a vida e nem a morte.

Não é questão de sorte!
D’outro lado o azar é o cego
que só quer ouvir teu sim.

Mas o fim do ego
Engole o ego do fim.

CRiga.




quinta-feira, 16 de maio de 2024


 

Um outono sem conspirações

 


O outono e sua faca cortante
De ódio contido.

Frio seco feito lâmina na cara que encara o caminho, 
Um doce crime nos espera,
Licor de ácido na boca da noite.

Céu de estrelas atrás da fumaça,
A feia urbanidade vira poesia.

O dia uma boba fuga prum café subversivo,
Na esquina do beco.
E com a ex-secretária do velho partido
Tramar revoluções embaixo de cobertores.

O outono e sua face de sensações
Contra o sentido da areia da ampulheta.

Violeta murcha, rosa que não a vermelha.
Dor no peito que não o sangue 
Da autoritária bala de borracha.

Estanque o desejo, guarde o frio seco
Quase sangrento no fio da faca.

O outono e seu eterno vinho pela metade
Escondido embaixo do casaco da cidade.
Já não somos mais tão jovens,
não temos mais conspirações.

O outono agora é só a impressão
Da tola importância que demos às boinas,
Cadernos nos bares
E poéticas revoluções.

O outono e sua faca cortante
De tantas desilusões.

CRiga.


terça-feira, 14 de maio de 2024


 

A tristeza é senhora

 


Vezes bate na gente
Aquele saudosismo de moço bobo
Perdido do outro lado da rua.

É só atravessar, meu velho,
Desafiando motoristas loucos.
É sua vez, a gente já foi moço demais
Pra correr dos carros poucos.

A solidão é que apavora!...

Medo de atravessar a rua
É mais o de não encontrar ninguém do outro lado
Do que ser atropelado.

CRiga.




segunda-feira, 13 de maio de 2024


 

Acabou, começou

 


Não adiantam dores amores flores rimas –
Quando desapaixona já era, meu amigo!

Nem chocolate nem jantar caro de um mês de salário
Naquele restaurante da propaganda que vocês ouviam
Quando de manhã iam juntos trabalhar.

A comida fica seca e mais cara,
O vinho dá dor de cabeça.
A sobremesa tem as calorias que precisa evitar,
Daqui uns dias tem balada com as amigas.

Desinfeta, desidrata então os temperos
A gente nem vai fazer aquele prato da tevê.

Desafasta, me dá ar, pega suas coisas e não demora.
Quer a hora do relógio?
É agora: a hora de você só ir embora.

No guarda-roupa cheirando a mofado tem
Aquele vestidinho lindo vermelhinho.
O decote ficou fundo demais
Ou eu que me afundei de peito aberto em você?

Vestido mofado? Qual o quê!
Boutique e vendedoras que parecem amigas de infância,
Um decote novo e um azul da paz que namoro.

Você aparece pra me pegar...
Arrumou o amassadinho do para-choque
Botou cheirinho de carro novo.

Criancinha com fome, chega a dar dó!
Ainda bem que me chega todo mês
O carnê do Médicos Sem Fronteira...

Falando em fronteira cruzo a cidade
Num táxi que toca Djavan:

“Cair nos pés do vencedor
Para ser o serviçal do Samurai
Mas eu tou tão feliz”...

Dizem
Que o amor próprio também atrai.

CRiga.



domingo, 12 de maio de 2024


 

Drops

 


Beijava o drops cereja
Com promessas de para-sempre.

Mas o para-sempre perdeu o gosto,
E no bolso coube a vida inteira
Dentro da carteira, uma foto desbotada.

Relançaram o drops nesse verão.
E eu não beijei,
só lembrei...

CRiga.



quarta-feira, 8 de maio de 2024


 

Engula a vida

 


Pode ser caco de vidro -
diamante sofrido
ou copo americano.

Importante é engolir
com a alma do garimpeiro que agradece
a pepita do dia.

Nunca com o desespero
do alcoólatra no balcão de um bar.

CRiga.